Laura dos Santos Dutra
“As lembranças eram doidas e rodopiavam de cá e de lá, entrechocando-se.
Algumas ásperas, outras, deslizando suaves, rolando, rolando, ao sabor da ventania”.
Prefácio:
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Dona Laura escreve com o coração. Ainda ontem, essa menina encantada, cheia de sonhos e vida, cativou lá no infinito, o direito de ser mãe, e ser mãe, a mais bonita. Moça de todo alegria amadureceu por amor, carregando no ventre sonhos: sementes de todo singelas, e a todas, sem reservas, com seu canto e seu encanto acalentou.
Laura dos Santos Dutra, vizinha setuagenária, conheceu o mundo através dos livros e os repartiu entre os seus. Nunca cansou de iluminar vidas, rasgando o céu de estrelas, de palavras, idéias e valores. Tua letra e tua garra, desmedida e atrevida é um sopro que arrebata nossa alma. No gesto do corpo, transmite contextos para além da imaginação. Mãos de fada zelosa, toda prosa, tu nos prove, de vida, que buscas nos recônditos da emoção.
Roda o caminho do tempo e nos brinda com essa história, cheia de significados e também nossa. Os teus filhos já criados. Aconchego-me nas lembranças. E olha lá a senhora desvendando seus mistérios, seus segredos mais profundos, dialogando com o mundo, num afago que não cansa. Ah! Essas eternas crianças que ainda puxam minha saia... E o amor que lhe escapa, daquele que já partiu, sorriu, feriu.
Tua história, dona Laura, ainda que a definas comum, é de todo singular. Receita para tirar espinhos que a vida sempre teima em brindar os itinerantes. A realidade que estampas e a ficção que tu crias é por demais envolvente, voa alto e se desdobra no eco de uma trama que descreves e circunscreve tua dor. No cotidiano és forte, sonhadora e não se cansa de gritar, fazer pirraça, fazer barulho. Mil irreverências para as asas de um coração.
Mestre e sentinela, zelosa escritora, plasma sua história de um amor comum com flashes da própria vida: seus sonhos, suas angústias e sua verdade. Sem dúvida, uma aquariana à frente do seu tempo. Revela a coragem de desvelar a parte que lhe é mais cara e teima em viver no lado esquerdo do peito: a coerência e a lealdade de uma vida repleta de gratificações.
Algumas ásperas, outras, deslizando suaves, rolando, rolando, ao sabor da ventania”.
Prefácio:
Carlos Alberto dos Santos Dutra
Dona Laura escreve com o coração. Ainda ontem, essa menina encantada, cheia de sonhos e vida, cativou lá no infinito, o direito de ser mãe, e ser mãe, a mais bonita. Moça de todo alegria amadureceu por amor, carregando no ventre sonhos: sementes de todo singelas, e a todas, sem reservas, com seu canto e seu encanto acalentou.
Laura dos Santos Dutra, vizinha setuagenária, conheceu o mundo através dos livros e os repartiu entre os seus. Nunca cansou de iluminar vidas, rasgando o céu de estrelas, de palavras, idéias e valores. Tua letra e tua garra, desmedida e atrevida é um sopro que arrebata nossa alma. No gesto do corpo, transmite contextos para além da imaginação. Mãos de fada zelosa, toda prosa, tu nos prove, de vida, que buscas nos recônditos da emoção.
Roda o caminho do tempo e nos brinda com essa história, cheia de significados e também nossa. Os teus filhos já criados. Aconchego-me nas lembranças. E olha lá a senhora desvendando seus mistérios, seus segredos mais profundos, dialogando com o mundo, num afago que não cansa. Ah! Essas eternas crianças que ainda puxam minha saia... E o amor que lhe escapa, daquele que já partiu, sorriu, feriu.
Tua história, dona Laura, ainda que a definas comum, é de todo singular. Receita para tirar espinhos que a vida sempre teima em brindar os itinerantes. A realidade que estampas e a ficção que tu crias é por demais envolvente, voa alto e se desdobra no eco de uma trama que descreves e circunscreve tua dor. No cotidiano és forte, sonhadora e não se cansa de gritar, fazer pirraça, fazer barulho. Mil irreverências para as asas de um coração.
Mestre e sentinela, zelosa escritora, plasma sua história de um amor comum com flashes da própria vida: seus sonhos, suas angústias e sua verdade. Sem dúvida, uma aquariana à frente do seu tempo. Revela a coragem de desvelar a parte que lhe é mais cara e teima em viver no lado esquerdo do peito: a coerência e a lealdade de uma vida repleta de gratificações.
História de um Amor Comum
Viro a chave na fechadura. Estou na área de serviço. A cozinha em silêncio. Meu Deus! Como seria bom não senti-la tão fria, tão vazia. Uma quietude com sons de morte. Ainda ressoam nas peças vazias os passos de quem havia partido. A certeza de estar só toma conta de mim, me possui, invadindo-me por inteira, dominando todo o meu ser. Minha cabeça romântica fica imaginando um olhar carinhoso, lavando-me de ternura, com aquela intimidade que penetra e se aninha lá no fundo. É um sentimento que transborda, envolve-me, jogando-me no chão. Alimenta-me de porções negativas de uma relação caótica.
O toque, o olhar, o aconchego da coberta em noites frias, a solicitude a massagear meus pés cansados, o copo de água oferecido com carinho, o afago nos cabelos, nada significou? Tudo mentira? Ele era humano e eu o tinha, por certo, invencível! Necessitava tanto de meus braços como eu dele. A frágil embarcação da nossa vida a dois chegou a praia, a deriva, com avarias feias e sem conserto.
Sento na velha cadeira de lona, no vão entre a porta do corredor e a varanda, espiando o seu possível retorno. Volto ser a pessoa que crê em milagres e contos de fadas. Penso que sou altiva e superior, mas a realidade é que tenho pena de mim mesma, e curto meu próprio deletério. Ponho a esperança no colo, embalo sonhos na semi-escuridão da tarde que agoniza e questiono os acontecimentos, envolvendo-os em benevolentes e suaves fragmentos de comiseração. Pensativa, me pergunto:
--Por que ele se foi?
--Alegou o cansaço. Eu o sufocava com minhas atitudes possessivas. Queria ser livre, quis aproveitar o que a vida ainda tinha a lhe oferecer. E a dor maior: disse que não me amava mais. E partiu.
--Alguém deixa de amar, assim, num passe de mágica, num passar de horas?
O cotidiano, inexoravelmente, vai destruindo a imagem idealizada. Os feios e mesquinhos fatos do dia-a-dia jogam por terra o ídolo. Despido de toda a magia, o homem, fica a nossa frente, frágil, inseguro, um menino. O gosto amargo do abandono oprimia meu coração, desesperando-o silenciosamente. Sentia falta de seus braços, quando, me ajudando, levemente me tocavam. O mistério de seus olhos, verdes, profundos, continham mil promessas. Uma delicia mergulhar naqueles abismos insondáveis.
Ninguém deixa de amar assim, não!
O nosso casamento, como uma viagem acidentada, escorregou, pulou obstáculos, encontrou pedras, desfiladeiros, transpôs rios e desertos áridos, cansou-se, exauriu-se, esvaziou-se... Calado, de pouco sorrir, mas a casa inteira vibrava com sua presença. Gentil, era atencioso e responsável: enfim, era o homem da minha vida!
Surpreendida pela ruptura inesperada, após mais de trinta e cinco anos de união fiquei desorientada, sem rumo na vida, sem identidade, sem companheiro, indecisa sobre o que fazer, que atitude tomar. Quando o sonho é imenso e total, o seu ruir nos atinge de maneira muito mais dolorosa. Mesmo sentido que num futuro próximo estaria novamente de pé. Agora era urgente ouvir e sentir gestos ou palavras de coragem e apoio. Esperava isso dos filhos, mas a ajuda não veio. Envolver-se, tomar partido, entendo que seria doloroso demais para eles. Prevaleceu a deslealdade e eu chorei sozinha a minha frustração.
Ele queria recuperar aquilo que, em nosso acordo amoroso, tínhamos empenhado: nossas vidas, nossa liberdade. Por amor, tínhamos construído aquele elo que nos prendia, e juntos abdicamos de nossos sonhos para, no decorrer dos anos, sustentar o sonho dos filhos. Juntos, nos aprisionamos espontaneamente, por amor.
Estou frágil. A solidão se encontra dentro de mim, e me machuca a indiferença dos que me cercam. Voltada para o meu mundinho particular, desatenta ao processo vertiginoso da evolução que nos rodeia, vejo nesta separação um acontecimento extremamente cruel e navego na voragem das causas e conseqüências.
A casa é grande. Fico meio perdida nestes espaços silenciosos. O passado me abraça e, na correnteza dos dias vazios, vou sem rumo, numa vida sem horizonte. Os filhos raramente aparecem para uma visita ligeira. Carregam as marcas da severidade, do autoritarismo e a falta de recordações carinhosas e afetivas da parte de pais preocupados com regras e preceitos. Quando eles chegam, entra sol e alegria na velha casa. Suas vozes altas e sonoras, risos alegres relembrando fatos antigos, brincadeiras deliciosas, namoros inocentes, bobagens infantis. Entra também, medrosa, na casa vazia, a esperança e junto dela, nossa história cujos filhos são os capítulos mais profundos e independentes.
Quantas horas felizes, sonhos embalados nos braços um do outro. Nossa história era uma história comum, mas havia luar e amor, quando nossos olhos se encontravam. Num dueto perfeito, juntamos nossos sonhos e, maravilhados, criamos um mundo só nosso. Ele e sua figura marcante, com um quê de juvenil que suavizava seu aspecto maduro. O olhar franco denotava o caráter integro e seu senso de responsabilidade. Sua postura perante a vida já revelava no moço o homem do amanhã. Em suma: era a paixão da minha vida!
O namoro foi longo e feliz. O casamento na quietude da cidade do interior, cercada de parentes e amigos, foi simples. Móveis e enxoval, só o indispensável. Dinheiro, quase nada. Uns poucos dias de lua-de-mel inesquecíveis na capital, o amor e o bolso vazio andavam de mãos dadas. O saco de pipocas muitas vezes substituiu uma refeição. Encantados, nos passeios, nem notávamos a falta do alimento. A vida a dois foi tranqüila e cheia de fé. Dávamos longas caminhadas pelos campos nos arredores da cidade. Curtíamos o amor à sombra generosa das árvores floridas. Economizando para comprarmos uma casa, sonhamos, olhando a lua nas noites frias de agosto. Sempre imaginei uma família grande, barulhenta, afetuosa, linda e sadia. Sabia que teria de trabalhar até a exaustão, que teria problemas, mas o meu sonho, eu o realizaria, tinha certeza.
E os filhos começaram a chegar todos os anos. Embevecida com tamanha ventura, amando aqueles pimpolhos que chutavam forte minha barriga e sugavam-me firme no seio, não viu, a pobre tola, que o amor estava morrendo no coração de seu jovem príncipe. Cheio de paciência e carinho, cumpriu na íntegra o compromisso assumido. A responsabilidade de uma família que se tornara numerosa roubara o espaço do dialogo e do lazer. Paralelo a isso, ele permanecia mais tempo longe de casa, em longas pescarias e acampamentos. O desgaste do dia-a-dia, a falta de atenção de minha parte e o eterno cansaço de uma montanha de afazeres acumulados sobre mim, foi pondo naquele jovem querido uma sombra de desilusão. A dureza de seu olhar, a boca contraída num ritual severo, revelava a mágoa profunda e destruidora.
Perdida entre fraldas e mamadeiras, irritada algumas vezes com minhas próprias dores e a das crianças, ignorei os apelos do meu homem, e ele se tornou inflexível, desesperançado e infeliz. Sem nada desconfiar, fui odiada por representar o cerceamento de sua liberdade; fui a causa de sua desventura. Determinado a cumprir o que assumira de livre espontânea vontade, ao ver os filhos adultos, achava-se no direito de aproveitar o que ainda lhe restava de uma vida que só vislumbrara por clareiras. Condenou nossa relação sem procurar saber si eu também não estaria afundando. Pecou porque não pediu ajuda, não dialogou, ignorou a força e o poder de uma união de amor.
Noites sem dormir, olhos secos, coração acelerado, adorando, na quietude do quarto, aquele vulto amado tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Desesperada, não entendia o por quê de tudo aquilo. Sua rejeição me machucava. No fundo, porém, havia a certeza que tudo passaria e os filhos iam crescer e tudo daria certo.
Tenho que acordar desse pesadelo, resolver este mistério, tocar a vida, juntar os pedaços do que restou. A mulher que se sabendo amada explode de felicidade, brilha; porém, desprezada ou mal-amada, encolhe-se como uma mísera minhoca, fica indefesa, perde o encanto. Imersa numa indiferença derrotista, tornei-me crítica e amarga. Passei a enxergar o lado feio da alma humana e, com o passar dos dias, volto para dentro de mim mesma, analiso e refaço todo o percurso e concluo ao mesmo tempo em que ele foi intenso e profundo. Relembrando esses fatos hoje eu penso que sempre restará o perfume de um passado que foi bom. Jamais se apagará a história que juntos escrevemos, como também tenho consciência que a dor já não é insuportável.
As sucessões dos dias, todos sabem, amenizam e gastam as arestas que machucam. Porque a saudade é como água tranqüila de um córrego, é como a chuva mansa nas tardes outonais que cai sem ruído, suave, lavando toda poeira e os detritos. Será que o amor morre quando o homem amado nos trata com indiferença? Alguns anos já se passaram depois de nossa separação e eu ainda me pergunto se tudo foi real. Na incerteza, mergulho no passado. O presente ainda me perturba. O futuro não existe e estou vivendo por viver.
Eu percebia certa inquietude ansiosa nos meus filhos, certa urgência para que eu definisse minha vida. Conseqüentemente, para eles, era a oportunidade de também definirem suas posições em relação a mim. Ou eu era idosa o suficiente para eles tomarem conta de mim, ou bastante ativa para não se preocuparem e eu levaria a vida como bem entendesse, tomando as rédeas de meu destino. O clima era de expectativa. Toda aquela solicitude me perturbava. Uma coisa, porém, foi positiva na separação: foi a independência que aos poucos fui impelida a assumir. Sempre gostei de me sentir livre, não ter que mergulhar sempre nos mesmos e velhos problemas. Há tempo queria alijar de meus ombros preconceitos e regras, às vezes absurdos.
Só que agora sinto medo de ser rejeitada. Tenho medo de magoar, de não ser entendida, medo de criar um clima de aborrecimento entre meus filhos. Acho importante ser aceita por eles, receber seu carinho. Por nutrir esse sentimento de insegurança, engoli muita raiva e desafeto. Ironicamente, engoli tanta coisa, não falei, não desabafei, não justifiquei. E acabei na solidão, perdi até o meu amor! Os filhos, já adultos, não precisavam mais de mim. Então, a solidão corrói as minhas e mais fortes decisões. Sinto-me sem horizonte. Continuo, apesar de todo esse processo de libertação, prisioneira dos velhos padrões de uma vida que já passou. Ainda assim, numa loucura de comportamento inexplicável, anseio por carinho e, sinto vergonha em confessar.
Um arrepio leve e sensual me percorre o corpo ao imaginar mãos fortes deslizando na minha pele, explorando zonas sensíveis, fazendo-me vibrar com anseios de carícias. Tenho gana de gritar que o amor não tem idade e que pele envelhecida e desidratada também vibra com acordes de ternura. A juventude passa, ficou a marca no meu corpo, mas a alma é plena de vigor. O cansaço de mãos maltratadas tornou-se docemente mágico ao contato.
Basta achar um álbum de fotografias. Ele já é o bastante para as recordações me possuírem. A mudança para o interior, junto com a família, o pai transferido, funcionário da rede ferroviária; a mãe dona de casa, mais a irmã pequena. Eu, mocinha, 17 anos lindos, toda romântica e sonhadora. Deixara lá na capital o namoradinho, as amigas, o emprego, os sonhos e as esperanças. Chorava muito. Custava deixar para trás aquela parte dourada da minha vida. Negava a aceitar aquela nova realidade. Aqui, nesta cidadezinha também haveriam de florir os caminhos. Sim, também aqui havia luar e amor envolvendo aquele mundo bucólico, e a amizade morava bem ali ao lado.
Um dia fui comprar o jornal que chegava da capital pelo trem de passageiro, diariamente. E aí aconteceu aquele momento mágico, aquele segundo, que muda o rumo de nossas vidas. Aqueles olhos me fitaram. Continha ainda o brilho de uma meninice não tão distante: a paixão da minha vida! Como pode acontecer que sendo eu uma menina nascida na capital, criada naquele vai-e-vem, que adorava passear na rua da Praia, ir ao cinema, participar de várias atividades próprias da juventude, que gostava de jogar vôlei, ler até de madrugada, comer pipocas e bala americana, em plena praça da Redenção, fosse se apaixonar por um moço simples do interior, sem conhecer outros horizontes que não fossem os limites da sua amada terrinha?
O toque da campainha me faz regressar do meu devaneio. Ligeira, atravesso o corredor e abro a porta lateral. Minha vizinha e amiga de muitos anos ali está e observo, num relance, que para ela também o tempo foi ingrato. Mas seus olhos são cheios de bondade.
--Vi quando a senhora chegou e como não abriu a casa vim saber se está tudo bem.
--Obrigada, dona Olga. Sempre que volto de minhas viagens --desculpo-me-- tenho ainda aquela sensação de abandono e de tristeza, então fico quieta recordando.
A vizinha se retira e eu retorno ao meu passado doce e distante. Sim, continuo a recordar o fracasso do meu casamento, uma história de desamor, um viver, um lutar, um iludir-se e um acreditar. Em minhas fantasias de adolescente imatura, enxergava com olhos de amor e dedicação os detalhes e as pistas que na minha cegueira eu não queria ver. Quando, pela primeira vez, eu surpreendi aquela mão amada segurando a mão de outra mulher, pensei estar flutuando, totalmente vazia de qualquer estrutura. Após o primeiro impacto, por segundos, fui atingida por uma dor tão grande e envolvente que me sufocou. O choro deu o alívio que precisava, choro de mágoa, choro de mulher traída. Só eu e mais ninguém poderia encontrar forças para reagir, e fazer ressuscitar a velha guerreira ferida, que se escondera nas sombras de seus pensamentos.
Durante o tempo em que se desenrolaram esses acontecimentos voltei para dentro de mim mesma e profundamente analisei e refiz toda a trajetória dos passos intensos e fecundos que trilhei. Questiono o meu modo de viver. A ausência de sentimentos me assusta. Nesse momento julgo-me um ser normal: sem ódios e sem amor! Mas estou apática, sem reação, estou afundando numa indiferença desoladora. Por que esse viver constante de ansiedade? Sentir-me só. Tomar antidepressivos? Para quê se, para sair da solidão, bastava abrir a porta e deixar a confiança e a afetividade se instalar e tomar conta de mim. Esse era o quadro da minha vida, quando em reunião familiar, os filhos decidiram que eu devia viajar.
Disseram que eu devia ir para a Serra, ver os lugares lindos que o Rio Grande do Sul possui. Sabiam de minha preferência por aquela região. Eu sempre olhei o mar com um pouco de receio e muito respeito pela sua imensidão. Os passeios na praia me davam a consciência da minha pequenez e acredito que a grande maioria daqueles que brincam e pulam na água nunca pararam para pensar naquela massa líquida que amedronte, mas ao mesmo tempo é grandiosa no seu vai-e-vem eterno.
Volto à minha história. Os filhos pensaram que eu distante, lá num hotelzinho da Serra, cercada pela natureza, pelas flores que eu tanto amava, teria oportunidade de pensar com mais clareza sobre minha vida: seria benéfico para a minha saúde física e mental e me distanciaria dos acontecimentos, o que me daria uma percepção mais justa. Não fiquei aborrecida com a medida adotada por eles. Achei que a decisão tomada, a escolha do hotel, as passagens, etc., todas foram acertadas.
A família é a coisa mais importante, diria, divina. Meus filhos, noras, genros e mais de quinze netos adoráveis, eles representam tudo aquilo que mais amo e respeito. Sempre enfatizei para eles a lealdade como fator básico. Eu os amo, mas não posso deixar de analisá-los objetivamente. Vejo suas qualidades com lentes de aumento e suas falhas, justifico-as, procurando as causas e tentando desculpar seus defeitos. Às vezes, quieta no meu canto, saboreio as delícias de imagina-los exuberantes e participativos, lutando por um mundo mais humano, fazendo coisas e agindo bem melhor do que minha geração no passado. Mas quando a realidade me toca com seus dedinhos lambuzados de doce ou olhos atrevidos e confiantes de uma adolescência florescente como o mel da vida, embriagados do querer e do poder, é aí que humildemente agradeço a Deus por essa dádiva. Sinto que a realidade é bem mais doce que o sonho e que o aqui e agora tem mais firmeza que o ontem. Tenho o conforto e o orgulho de saber que eu sou a origem e o centro desta família maravilhosa, tão cara e insubstituível.
É uma família linda e cheia de surpresas. O filho mais velho, veterinário, amante da natureza, estará pesquisando lá pelo Pantanal ou talvez procurando plantas exóticas ou pouco conhecidas para enriquecer seu herbário. Ou talvez carregando algum índio doente na sua velha toyota, companheira preciosa naquela região inóspita. O quase extinto grupo Ofaié tem em meu filho um defensor preocupado com a demarcação das terras pertencentes a eles, e com as injustiças praticadas contra um desses pobres donos das ricas terras brasileiras. O segundo filho, uma linda menina, tornou-se, com o passar dos anos, o meu braço direito quando chegava um nenê novo a cada ano. Sempre foi, desde criança, ativa e independente. Era linda e certamente nascera para ser uma grande figura no mundo dos negócios, administrando, executando. Deveria brilhar, ser importante. Mas a vida encarregou-se de faze-la sofrer com dores que somente as mães têm o privilégio de ter. Deus em sua infinita sabedoria presenteou-a com um filho portador de necessidades especiais e um marido desumano.
O magistério atraiu a filha do meio. Sensata, calma e determinada, deixou para o irmão caçula os louros de um casamento por amor. Diverte-se. É a animação que falta a qualquer festa. Mas foge do casamento, talvez por ver a infelicidade da irmã mais velha. Cercada por paisagem exuberante por verdes cerros e ao longe, montanhas, a filha menor, tira leite de vacas, cultiva sua horta, cuida de pintos e galinhas. Deslumbrada com toda a natureza que a fascina e a nutre, sofre também a pressão e os limites da geografia sobre sua vida. Casou cedo com um ótimo rapaz, que além de amá-la, tinha uma outra grande paixão na vida: a terra que lhe dava o sustento, os arrozais e os tratores. A pesquisa do solo, o manuseio da terra, os tenros brotos do arroz que nasciam mergulhados na água, tudo isso lhe enchia o peito de um orgulho ingênuo, uma paixão verde-esmeralda que ondulava suavemente sobre os últimos raios de sol que agoniza atrás dos montes.
O arroz é amorosamente inspecionado por seus olhos vigilantes, tirando ervas daninhas, irrigando-os com paciência: tenta protege-los da inclemência dos temporais. Orgulhoso, contempla o fruto do seu trabalho, sorri complacente para as filhas e a esposa, e sonha com um amanhã mais próspero e compensador. Marta, a esposa, acredita no que faz. Vê as luzes da cidade que brilham ao longe e sonha. Eu sei que, tendo um caráter firme, e sendo honesta, vai cumprir a sua parte, como fez seu pai. Dúvidas quanto sua felicidade, sua mãe guarda em silêncio.
Num estúdio simples e espaçoso, sem grandes pretensões, o outro filho, luta para transformar com seus pincéis mágicos, a realidade do seu talento, da poesia que vive dentro de si, seu amor à vida e à beleza. É um poeta de borrões cintilantes, esperança cristalizada em pinceladas com arte, dignas de um mestre. É um homem com a alma pura de uma criança. Ele crê, ele cria, ele é um pequeno deus! Insatisfeito com suas telas, sempre faltando alguma coisa, jamais acha bom o que cria e lá parte ele para um novo retoque, deixando sempre inacabadas telas lindas e originais. Como os dedos das mãos, desiguais, distintos e insubstituíveis, os filhos também formam aquela miscelânea gostosa e surpreendente. Se um é idealista, o outro se realiza nas artes, o outro é fascinado pelas máquinas. Também há o filho que se destaca nos números, no mundo frio e calculista dos negócios. Dessa aparente aridez, ele consegue extrair emoções como o viajante que acha a flor rara na fenda da rocha nua. Meu filho caçula, Fernando, veio até a nossa velha casa com o carro do irmão para levar-me à capital, Porto Alegre, onde se encontrava o restante da turma. Vejo-o agindo assim, movido por um sentimento quixotesco, uma excitação amorosamente filial.
Pensativa, indecisa sobre aceitar ou não a proposta dos filhos, fecho a casa e parto. Todos se reuniram na casa do tio. Falaram, discutiram e decidiram. Pobres queridos. E decidiram que eu devia partir e aproveitar a vida.
--Ela está sozinha. Ninguém vai interferir nos seus planos. Deve ir e aproveitar aquilo que a vida lhe oferece.
--Se ame um pouco! Viva a sua independência, permita que a felicidade, o romance, a aventura, e porque não, o amor, faça parte de sua vida!
--Solte-se, mãe! Procure ser feliz, se puder...
Dividida em dúvidas, pressionada, amorosamente empurrada para um desconhecido que me assustava, e lá me colocaram num ônibus de turismo.
--Cuide-se. Escreva.
Deixei-os. Pela primeira vez sozinha, enfrentei um lugar estranho, sem ter ninguém para segurar minha mão. Pensava ressentida: --Poderia ser diferente?
Sentia-me insegura, meu coração estava apertado como pássaro que, criado em gaiola, não sabe voar com as próprias asas atrofiadas e o horizonte é algo inatingível. Eu sentia medo em face da impossibilidade de usufruir daquela feliz e inesperada liberdade. Vivia num emaranhado de idéias, em busca de soluções sem fundamento, planos fantasiosos e sem estrutura. Sair da minha casa, do meu seguro abrigo e fazer essa viagem era como mergulhar no desconhecido era como virar as costas para o real. Sentia tristeza por deixa-los. E sentia saudade antecipada ao vê-los tão unidos, tão confiantes, me acenando na tumultuada rodoviária. Eles tinham a certeza de haver tomado a atitude certa e conseqüentemente desfrutavam da paz do dever cumprido, do amor testado e externado.
Eu estava gostando e ao mesmo tempo temendo por este passeio. Dois dias antes, havia preparado as malas. As passagens, reservas etc., ficaram por conta dos filhos. O lembrete para regarem as minhas plantinhas, autorizações para o pagamento de água, luz e telefone, tudo isso envolvia o meu mundo, o meu lar. Com os olhos preocupados de dono, deixei bilhetes de aviso espalhados pela casa, desejando tocar em pensamento lembranças prosaicas. E parti.
Um expoente da engenharia automobilística, aquele monstro moderno, de lataria brilhante e polida, vidros fumê, TV a bordo e música ambiente, o ônibus corria a l00 km por hora num asfalto muito liso que faria inveja até as estradas da Europa. Meus olhos fitam a paisagem que passa rapidamente na minha janela e o vento que agita os meus cabelos traz junto o cheiro do mato que, margeando a estrada, joga sobre o asfalto uma sombra úmida e gostosa. Não posso capturar com os olhos tudo que vejo devido à velocidade do veículo, mas isso me deixa empolgada, pois somos formiguinhas neste cenário gigante.
A viagem é longa, a sucessão dos montes, cadeias de montanhas, rios e vales profundos satura de verde a beleza. Na poltrona ao lado, um senhor elegante e solene absorvido na leitura do jornal. Logo na frente vejo duas meninas lindas, ao que parecem, gêmeas. Mais adiante, uma velha senhora carregando grandes sacolas. Os lugares, quase todos ocupados, pessoas simpáticas, algumas indiferentes, anônimas, tirando um cochilo ou tagarelando com o ocupante do lado. O moço bonito que vai guiando serra acima, tranqüilo e lépido, assobia uma música sertaneja, bem atual, que se soma ao som monótono do motor no esforço da subida.
Sem notar o ar condicionado que enlouquece sutilmente, deixo-me embalar e docemente solto as amarras do fantástico. Que a magia do faz-de-conta me apanhe e me jogue na realidade criada pela imaginação. Tenho as mãos e a cabeça carregada de estrelas e os olhos povoados de sonhos. Antes de adormecer, volto meu pensamento aos filhos, e fico admirada. Como eles se agigantaram no espaço que foi meu. Talvez tentando suprir a lacuna que Felipe deixou em minha vida. Vejo-os com olhos mais bondosos, procuro e, ciumenta, guardo suas lembranças, seus valores. Um por um eles desfilam por meus olhos fechados e, com ternura saudosa sinto-os, ao final daquela tarde, muito perto de mim.
Percebo que está anoitecendo. Sinto dores musculares nas costas e recordo como antigamente era fácil e até gostoso subir em trens, viajar no ônibus, carregar pacotes, levar criança no colo, pela mão ou na barriga, e ter ainda vontade de rir, olhar vitrines, admirar as flores dos parques, me divertir, até sentir emoção de ver um desfile da Semana da Pátria. Agora olho, apreensiva, os degraus, e me preocupo com escadas que tenho que galgar. Será que o corpo gasto e em declínio, faz por birra petulante em não aceitar suas limitações? Quer ser jovem, olha com desdém o ridículo, desconhece suas fragilidades. Não aceita conselhos de ninguém, aliás, aceita, mas não os cumpre. Dá para entender?
Uma parada brusca. Barulho de freios, e sinto-me jogada sem proteção, para frente, para o vazio. O corpo relaxado na poltrona, semi-adormecido, não reagiu. Os reflexos tardios me surpreendem. Seria uma queda ridícula. Mas o vizinho da poltrona me segurou.
--Desculpe senhora, por acaso machuquei seu braço? O momento era de urgência.
Agradeci, meio sorrindo, meio assustada, sem graça. Prometi a mim mesma, ficar atenta durante a viagem e parar de sonhar. Uma boa parte da viagem havia transcorrido e eu já perdera parte do encanto e interesse. Começava a sentir pena por mim mesma. Meus olhos fitaram a paisagem. Meu rosto estava tranqüilo, bem comportado. Minhas mãos agora descansam entrelaçadas e suaves no meu colo. Por dentro, entretanto, uma angústia subia o meu peito, uma tentação de sacudir as pessoas daquele ônibus, uma vontade imensa de gritar e falar-lhes de seu egoísmo.
--Vocês só olham para si mesmos e esquecem a solidão daquele que lhes está próximo!
É gostoso ouvir vozes amigas, cordiais. Sentir solidariedade, o amor vibrando no ar.
--Por favor, não reparem esses olhos cansados. Vejam somente uma mulher madura, viva, forte, que tenta viver no palco da vida, sua derradeira performance. Exaurida pelas emoções que, por serem ocultas são mais devastadoras, componho uma fisionomia distante, fria, porém não menos inteligente. Enquanto meus olhos atentos continuam captando a paisagem que foge velozmente, sonho.
Quem conhece a serra gaúcha, já pôde perceber seus impenetráveis vales, que de tão profundos, escondem minúsculas casas e o reflexo prateado de algum córrego. Por aqueles lados de Bento Gonçalves e Caxias do Sul, vindo de Porto Alegre, passamos por lugares lindíssimos: montanhas, pequenos vales, como as pinturas bucólicas de John Constable, que usava pinceladas fortes em paisagens simples. A floresta nativa de vegetação verde-escura, sombria, formava longas extensões completamente desabitadas, desconhecidas, e que eram observadas com respeito. Aqui na segurança do ônibus, a natureza me parece misteriosa, estranhamente rodeada de trepadeiras floridas, cipós e flores agrestes que a abraçavam. As luzes da cidade já eram vistas ao longe brilhando, parecendo minúsculos vaga-lumes, dando boas-vindas para os pobres viajantes, saudosos, cansados e apressados.
As rodoviárias são todas semelhantes, barulhentas e coloridas. Nelas acontecem sempre coisas parecidas. Multidões heterogêneas, indiferentes. Alguns parecem perdidos no tumulto. E há sempre alguém a procura por alguém. Carregadores gritam oferecendo seus serviços. Malas ficam sem os seus donos e donos aflitos procuram suas malas. Um pouco assustada suspirei aliviada pelo bom êxito da viagem, e agradeci por mais essa etapa vencida. Peguei um táxi, dei o cartão com o endereço ao motorista e com grande curiosidade pesquisava as ruas centrais, os jardins e as avenidas.
Rumamos para o hotel que ficava localizado na parte alta da cidade, afastado do burburinho do comércio, do tráfego intenso e das repartições públicas. Encantada, percorremos uma zona residencial cheia de lindas casas espaçosas, com alamedas e jardins floridos de gerânios e azaléias, onde grades altas nos separavam de cães enormes e pachorrentos. Naquela parte da cidade havia uma tranqüilidade envolvente. O hotel era um velho casarão que certamente já conhecera melhores dias. Ele estava plantado na parte mais elevada da região e era perfeito para o repouso e o laser.
O quarto era simples. E o sono foi profundo, sem sonhos ou pesadelos. Pela manhã ao abrir a janela me deparei com um cenário cinematográfico. Altas montanhas me fitavam distantes e o sol dissipava lentamente aquela bruma que ofuscava a transparência atmosférica sobre a cidade. Ao me dirigir para o refeitório tudo era surpresa e o odor das roseiras, a limpeza escrupulosa e o carinho do pessoal à minha volta, me davam a certeza de que aquele refúgio me traria de volta a paz e novamente o gosto pela vida.
--Bom dia.
Surpresa, reconheci o homem distinto que, sentado junto a uma das mesas, me cumprimentava. Era o mesmo cavalheiro que no ônibus evitara minha queda. Envergonhada, lembrei-me que tivera aquela idéia maluca lá no ônibus e agora perturbada me perguntava:
--Será que ele leu meus pensamentos?
Ali, na claridade daquela manhã, cheirando a campo e com sabor de mel, respondi evasivamente, encaminhando-me para uma mesa sob a janela. Mentalmente me parabenizei por haver vestido algo bem apropriado ao ambiente. Continuava com o meu jeito bem feminino de ser, apesar dos anos. Pelo canto do olho vi o tal senhor caminhando em direção a varanda, onde grandes e confortáveis poltronas de cana-da-índia convidavam ao relax. Fico tranqüila. Alimento-me bem, com queijo fresquinho, leite, mel, pães e doces caseiros, uma variedade de patês e salames produzidos na própria região. Após terminar a refeição pensei em ir para o quarto, mas uma curiosidade, bem feminina, fez-me mudar de idéia. Levantei-me e fui para a varanda. Mal adentro aquele espaço e percebo o homem lindo que vem ao meu encontro. Sorrindo, convida-me para sentar e fica em minha companhia.
--Gostaria de conversar um pouco? Afinal somos velhos conhecidos, não?
--E por que não? Parece que estamos aqui para repousar. Algo do tipo férias para quem está sempre de férias...
Ele ri. Afasta a cadeira para mim e instala-se confortavelmente. Uma conversa amena, gostosa nos entretém por horas a fio. Chamava-se Mário Thomas Vernez. Era industrial aposentado e encontrava-se viúvo há quase quinze anos. Apesar de afastado dos negócios continuava na ativa, viajando pelo Brasil e exterior, fazendo contato para a firma que era dirigida pelos filhos. Morava em um pequeno apartamento em Porto Alegre e agora, em Cerros Verdes --essa cidadezinha encantadora onde me encontrava--, tiraria um descanso. Mais tarde viajaria para um lugar próximo, a uns 60 km dali, onde vivia sua velha mãe. Essas confidências despertaram em mim o desejo de também contar coisas de minha vida, mas uma preocupação natural, sendo ele ainda um desconhecido, me freou. Existe em mim uma facilidade desmedida de confiar em todo tipo de pessoas. E foi isso que me permitiu ao longo desses dias lindos, tantas confidências e trocas de informações.
Fazemos pequenas caminhadas por veredas selvagens explorando os arredores. A brisa suave que vinha do vale rapidamente se transforma em ventos gelados que as frentes frias, muito comuns no Sul, convidavam ao aconchego, à lareira e à intimidade. Longas tardes de conversação, muita simpatia, bálsamo que suavizou as feridas, criando entre nós um laço de amizade e companheirismo. Pequenas excursões ao centro comercial da cidade nos deixavam alegres e cansados, pois as ruas tinham descidas acentuadas e longas subidas. Estávamos tão carentes e envolvidos, que os livros e as revistas que trouxe para distrair-me ficaram esquecidos no fundo da mala.
Quando vim para esse lugar, por sugestão dos filhos, tinha a nítida certeza de que a minha vida havia se transformado numa verdadeira droga. Tanto podia vivê-la como jogá-la na lata de lixo, que tudo daria no mesmo. Eu não era importante. Era tratada com indiferença --sem maldade é claro--, por aqueles a quem eu mais amava. Era esse sentimento, entretanto, que dava àquele homem a minha frente, uma importância maior, uma projeção gratificante para minha vida naquele momento.
Parecia brincadeira e talvez, na minha idade, a palavra apropriada fosse desequilíbrio, interiormente eu ria, e dizia para mim mesma:
--Deves estar numa carência enorme, sua idiota! Cuidado! Coisa boa não anda solta por ai, dando bandeira. Não vai te dar mal. Não te esqueças que és mãe de família e tens um currículo de vida. Não vais resvalar ladeira abaixo, só pelo fato de alguém haver te dado um pouco mais de atenção.
Passaram-se sete dias e a minha vida estava completamente mudada. Eu dera um salto no desconhecido. Mário já fazia parte do meu dia-a-dia. Almoçávamos juntos, na varanda, como dois bons amigos. Gosto de ouvi-lo discorrer sobre os diversos lugares do mundo onde já percorreu. Gosto de ouvi-lo falar sobre literatura, arte e teorias filosóficas. Inteligente e culto, porém de modo singular: não havia divergência entre nós. Para o meu escasso conhecimento, ele era a fonte.
O restaurante cheio de gente jovem, os garçons correndo solícitos. A fumaça traz junto o cheiro do churrasco que vinha de uma ala do estabelecimento. Tudo isso ao som da gaita chorona bem ao gosto da tradição gaúcha. Sentamo-nos à mesa, perto da janela, onde a noite fria e escura nos espiava por entre as dobras do cortinado rústico, porém de bom gosto. Sensibilizava-me a maneira gentil como Mário cuidava para que tudo estivesse confortável para mim. Preocupado, apressa-se em sugerir o cardápio: pequenos detalhes delicados, gestos que revelavam o tipo de homem que estava a minha frente. Esse acontecimento, o jantar na churrascaria típica foi, sem dúvida, especial. Senti-me importante, respeitada, me encontrei. Aflorou em mim a mulher, com magnetismo e charme, como toda mulher sonha.
A caminhada de volta até o hotel, naquela noite fria, foi o encerramento perfeito e que marcou a minha vida. Seria lembrado com doçura e expectativa. Depois de desejar-me Boa Noite, o aperto de mão, os olhos nos olhos, e o despertar medroso acalentou um sentimento mais profundo, uma interrogação ficou suspensa entre nós. Deitada, sozinha, naquela cama estreita e prevendo que algo incessante e forte estaria por vir, sinto novamente a angústia, a velha companheira daqueles que se julgam incompreendidos. O coração parece que vai renascer, mas ainda dói, magoado. Mágoa de não ter sido gente para alguém. Porque gente (ainda mais quando ama), não se larga assim nas voltas do caminho. Só jogamos fora objetos que não servem mais, quando quebrados ou sem serventia e importância. Pessoas, nós as respeitamos, as amamos! Meu ego ferido jogava duro sobre mim e tudo a minha volta era uma nuvem de tristeza e dúvidas. Ou era o amor, como eu queria crer?
Aflita, eu rolo na cama e sem querer, num movimento brusco, sinto a dor. Como um animal selvagem que fica de tocaia e ataca de surpresa, a dor me assalta e me domina. Com pinceladas de drama há um retrocesso, e tudo está ali: os sangramentos, o medo, os exames, a cirurgia, o choro... A torcida fervorosa de todos para que fosse benigno e a esperança despontando trêmula num ambiente nervoso, porém de fé. Recuperação lenta, dias de dor, sombrios, onde a preocupação e a tristeza se alojaram até nas paredes da casa. Os amigos chegaram e partiram. Todos deram o seu apoio, sua solidariedade. O tempo passou. Tragada pela ciranda louca da separação, no desmoronamento de uma união que parecia tão sólida, esqueci da doença, quis acreditar na cura. Proibi a todos de falar no assunto. Tolice da minha parte! Meu lado infantil fabricando um faz-de-conta, uma tentativa vã de ludibriar a seqüência dos acontecimentos e da vida. Trêmula, tive a certeza que ela voltara, me devorando lentamente, matando minhas esperanças, meus sonhos, minha vida.
A noite escura da dor estava dentro de mim. Eram horas longas e amargas, num calidoscópio de lembranças suavizadas pelo pranto manso que de quando em vez me lavava a cara. A madrugada chega e com ela o alívio. Antes de cerrar os olhos para o descanso do corpo e da alma, um pensamento ainda me assalta:
--Quanto tempo? O que me separa da grande viagem?
Se Felipe estivesse aqui, os filhos já adultos e com a estabilidade econômica poderíamos, de mãos dadas, ver o mundo que não tivemos tempo de ver; poderíamos caminhar por lugares onde não nos foi possível percorrer. Falar de tudo aquilo que sufocamos por um tempo demasiadamente longo dentro de nós mesmos era preciso. Porque o dia só tem vinte e quatro horas e o nosso era multiplicado. Agora que eu precisava tanto de um ombro amigo, um olhar doce para acalmar o meu pavor e medo, agora que eu precisava de braços fortes para me ajudar a ver horizontes onde a doença punha limites, justamente agora eu estava só. Olhos inchados e o peso da idade e da doença já se evidenciavam nas faces murchas, sem brilho. Mas ainda restava um pouco de ânimo. E cá estou eu com uma maquiagem discreta e necessária, com uma roupa adequada para sair. Quero caminhar sozinha um pouco. Quero pôr em ordem os fatos, fazer um balanço de tudo que está acontecendo e tomar algumas decisões.
Naquela manhã fria, uma rápida caminhada me levou ao largo da praça, abrigada por sebes e hibiscos, todos floridos nesta época do ano. Sento num velho banco carcomido pelo tempo e sinto o frio da pedra. Penso em Mário, penso na minha vida e percebo a dor do abandono. Penso também na importância de um companheiro. Mário havia se tornado importante. Aprendi a admirá-lo. Suas maneiras gentis, sua conversa leve e culta, seu aspecto sadio e honesto. Principalmente o carinho, a amizade, o respeito, e talvez o amor que vejo no fundo dos seus olhos.
O toque, o olhar, o aconchego da coberta em noites frias, a solicitude a massagear meus pés cansados, o copo de água oferecido com carinho, o afago nos cabelos, nada significou? Tudo mentira? Ele era humano e eu o tinha, por certo, invencível! Necessitava tanto de meus braços como eu dele. A frágil embarcação da nossa vida a dois chegou a praia, a deriva, com avarias feias e sem conserto.
Sento na velha cadeira de lona, no vão entre a porta do corredor e a varanda, espiando o seu possível retorno. Volto ser a pessoa que crê em milagres e contos de fadas. Penso que sou altiva e superior, mas a realidade é que tenho pena de mim mesma, e curto meu próprio deletério. Ponho a esperança no colo, embalo sonhos na semi-escuridão da tarde que agoniza e questiono os acontecimentos, envolvendo-os em benevolentes e suaves fragmentos de comiseração. Pensativa, me pergunto:
--Por que ele se foi?
--Alegou o cansaço. Eu o sufocava com minhas atitudes possessivas. Queria ser livre, quis aproveitar o que a vida ainda tinha a lhe oferecer. E a dor maior: disse que não me amava mais. E partiu.
--Alguém deixa de amar, assim, num passe de mágica, num passar de horas?
O cotidiano, inexoravelmente, vai destruindo a imagem idealizada. Os feios e mesquinhos fatos do dia-a-dia jogam por terra o ídolo. Despido de toda a magia, o homem, fica a nossa frente, frágil, inseguro, um menino. O gosto amargo do abandono oprimia meu coração, desesperando-o silenciosamente. Sentia falta de seus braços, quando, me ajudando, levemente me tocavam. O mistério de seus olhos, verdes, profundos, continham mil promessas. Uma delicia mergulhar naqueles abismos insondáveis.
Ninguém deixa de amar assim, não!
O nosso casamento, como uma viagem acidentada, escorregou, pulou obstáculos, encontrou pedras, desfiladeiros, transpôs rios e desertos áridos, cansou-se, exauriu-se, esvaziou-se... Calado, de pouco sorrir, mas a casa inteira vibrava com sua presença. Gentil, era atencioso e responsável: enfim, era o homem da minha vida!
Surpreendida pela ruptura inesperada, após mais de trinta e cinco anos de união fiquei desorientada, sem rumo na vida, sem identidade, sem companheiro, indecisa sobre o que fazer, que atitude tomar. Quando o sonho é imenso e total, o seu ruir nos atinge de maneira muito mais dolorosa. Mesmo sentido que num futuro próximo estaria novamente de pé. Agora era urgente ouvir e sentir gestos ou palavras de coragem e apoio. Esperava isso dos filhos, mas a ajuda não veio. Envolver-se, tomar partido, entendo que seria doloroso demais para eles. Prevaleceu a deslealdade e eu chorei sozinha a minha frustração.
Ele queria recuperar aquilo que, em nosso acordo amoroso, tínhamos empenhado: nossas vidas, nossa liberdade. Por amor, tínhamos construído aquele elo que nos prendia, e juntos abdicamos de nossos sonhos para, no decorrer dos anos, sustentar o sonho dos filhos. Juntos, nos aprisionamos espontaneamente, por amor.
Estou frágil. A solidão se encontra dentro de mim, e me machuca a indiferença dos que me cercam. Voltada para o meu mundinho particular, desatenta ao processo vertiginoso da evolução que nos rodeia, vejo nesta separação um acontecimento extremamente cruel e navego na voragem das causas e conseqüências.
A casa é grande. Fico meio perdida nestes espaços silenciosos. O passado me abraça e, na correnteza dos dias vazios, vou sem rumo, numa vida sem horizonte. Os filhos raramente aparecem para uma visita ligeira. Carregam as marcas da severidade, do autoritarismo e a falta de recordações carinhosas e afetivas da parte de pais preocupados com regras e preceitos. Quando eles chegam, entra sol e alegria na velha casa. Suas vozes altas e sonoras, risos alegres relembrando fatos antigos, brincadeiras deliciosas, namoros inocentes, bobagens infantis. Entra também, medrosa, na casa vazia, a esperança e junto dela, nossa história cujos filhos são os capítulos mais profundos e independentes.
Quantas horas felizes, sonhos embalados nos braços um do outro. Nossa história era uma história comum, mas havia luar e amor, quando nossos olhos se encontravam. Num dueto perfeito, juntamos nossos sonhos e, maravilhados, criamos um mundo só nosso. Ele e sua figura marcante, com um quê de juvenil que suavizava seu aspecto maduro. O olhar franco denotava o caráter integro e seu senso de responsabilidade. Sua postura perante a vida já revelava no moço o homem do amanhã. Em suma: era a paixão da minha vida!
O namoro foi longo e feliz. O casamento na quietude da cidade do interior, cercada de parentes e amigos, foi simples. Móveis e enxoval, só o indispensável. Dinheiro, quase nada. Uns poucos dias de lua-de-mel inesquecíveis na capital, o amor e o bolso vazio andavam de mãos dadas. O saco de pipocas muitas vezes substituiu uma refeição. Encantados, nos passeios, nem notávamos a falta do alimento. A vida a dois foi tranqüila e cheia de fé. Dávamos longas caminhadas pelos campos nos arredores da cidade. Curtíamos o amor à sombra generosa das árvores floridas. Economizando para comprarmos uma casa, sonhamos, olhando a lua nas noites frias de agosto. Sempre imaginei uma família grande, barulhenta, afetuosa, linda e sadia. Sabia que teria de trabalhar até a exaustão, que teria problemas, mas o meu sonho, eu o realizaria, tinha certeza.
E os filhos começaram a chegar todos os anos. Embevecida com tamanha ventura, amando aqueles pimpolhos que chutavam forte minha barriga e sugavam-me firme no seio, não viu, a pobre tola, que o amor estava morrendo no coração de seu jovem príncipe. Cheio de paciência e carinho, cumpriu na íntegra o compromisso assumido. A responsabilidade de uma família que se tornara numerosa roubara o espaço do dialogo e do lazer. Paralelo a isso, ele permanecia mais tempo longe de casa, em longas pescarias e acampamentos. O desgaste do dia-a-dia, a falta de atenção de minha parte e o eterno cansaço de uma montanha de afazeres acumulados sobre mim, foi pondo naquele jovem querido uma sombra de desilusão. A dureza de seu olhar, a boca contraída num ritual severo, revelava a mágoa profunda e destruidora.
Perdida entre fraldas e mamadeiras, irritada algumas vezes com minhas próprias dores e a das crianças, ignorei os apelos do meu homem, e ele se tornou inflexível, desesperançado e infeliz. Sem nada desconfiar, fui odiada por representar o cerceamento de sua liberdade; fui a causa de sua desventura. Determinado a cumprir o que assumira de livre espontânea vontade, ao ver os filhos adultos, achava-se no direito de aproveitar o que ainda lhe restava de uma vida que só vislumbrara por clareiras. Condenou nossa relação sem procurar saber si eu também não estaria afundando. Pecou porque não pediu ajuda, não dialogou, ignorou a força e o poder de uma união de amor.
Noites sem dormir, olhos secos, coração acelerado, adorando, na quietude do quarto, aquele vulto amado tão perto e ao mesmo tempo tão distante. Desesperada, não entendia o por quê de tudo aquilo. Sua rejeição me machucava. No fundo, porém, havia a certeza que tudo passaria e os filhos iam crescer e tudo daria certo.
Tenho que acordar desse pesadelo, resolver este mistério, tocar a vida, juntar os pedaços do que restou. A mulher que se sabendo amada explode de felicidade, brilha; porém, desprezada ou mal-amada, encolhe-se como uma mísera minhoca, fica indefesa, perde o encanto. Imersa numa indiferença derrotista, tornei-me crítica e amarga. Passei a enxergar o lado feio da alma humana e, com o passar dos dias, volto para dentro de mim mesma, analiso e refaço todo o percurso e concluo ao mesmo tempo em que ele foi intenso e profundo. Relembrando esses fatos hoje eu penso que sempre restará o perfume de um passado que foi bom. Jamais se apagará a história que juntos escrevemos, como também tenho consciência que a dor já não é insuportável.
As sucessões dos dias, todos sabem, amenizam e gastam as arestas que machucam. Porque a saudade é como água tranqüila de um córrego, é como a chuva mansa nas tardes outonais que cai sem ruído, suave, lavando toda poeira e os detritos. Será que o amor morre quando o homem amado nos trata com indiferença? Alguns anos já se passaram depois de nossa separação e eu ainda me pergunto se tudo foi real. Na incerteza, mergulho no passado. O presente ainda me perturba. O futuro não existe e estou vivendo por viver.
Eu percebia certa inquietude ansiosa nos meus filhos, certa urgência para que eu definisse minha vida. Conseqüentemente, para eles, era a oportunidade de também definirem suas posições em relação a mim. Ou eu era idosa o suficiente para eles tomarem conta de mim, ou bastante ativa para não se preocuparem e eu levaria a vida como bem entendesse, tomando as rédeas de meu destino. O clima era de expectativa. Toda aquela solicitude me perturbava. Uma coisa, porém, foi positiva na separação: foi a independência que aos poucos fui impelida a assumir. Sempre gostei de me sentir livre, não ter que mergulhar sempre nos mesmos e velhos problemas. Há tempo queria alijar de meus ombros preconceitos e regras, às vezes absurdos.
Só que agora sinto medo de ser rejeitada. Tenho medo de magoar, de não ser entendida, medo de criar um clima de aborrecimento entre meus filhos. Acho importante ser aceita por eles, receber seu carinho. Por nutrir esse sentimento de insegurança, engoli muita raiva e desafeto. Ironicamente, engoli tanta coisa, não falei, não desabafei, não justifiquei. E acabei na solidão, perdi até o meu amor! Os filhos, já adultos, não precisavam mais de mim. Então, a solidão corrói as minhas e mais fortes decisões. Sinto-me sem horizonte. Continuo, apesar de todo esse processo de libertação, prisioneira dos velhos padrões de uma vida que já passou. Ainda assim, numa loucura de comportamento inexplicável, anseio por carinho e, sinto vergonha em confessar.
Um arrepio leve e sensual me percorre o corpo ao imaginar mãos fortes deslizando na minha pele, explorando zonas sensíveis, fazendo-me vibrar com anseios de carícias. Tenho gana de gritar que o amor não tem idade e que pele envelhecida e desidratada também vibra com acordes de ternura. A juventude passa, ficou a marca no meu corpo, mas a alma é plena de vigor. O cansaço de mãos maltratadas tornou-se docemente mágico ao contato.
Basta achar um álbum de fotografias. Ele já é o bastante para as recordações me possuírem. A mudança para o interior, junto com a família, o pai transferido, funcionário da rede ferroviária; a mãe dona de casa, mais a irmã pequena. Eu, mocinha, 17 anos lindos, toda romântica e sonhadora. Deixara lá na capital o namoradinho, as amigas, o emprego, os sonhos e as esperanças. Chorava muito. Custava deixar para trás aquela parte dourada da minha vida. Negava a aceitar aquela nova realidade. Aqui, nesta cidadezinha também haveriam de florir os caminhos. Sim, também aqui havia luar e amor envolvendo aquele mundo bucólico, e a amizade morava bem ali ao lado.
Um dia fui comprar o jornal que chegava da capital pelo trem de passageiro, diariamente. E aí aconteceu aquele momento mágico, aquele segundo, que muda o rumo de nossas vidas. Aqueles olhos me fitaram. Continha ainda o brilho de uma meninice não tão distante: a paixão da minha vida! Como pode acontecer que sendo eu uma menina nascida na capital, criada naquele vai-e-vem, que adorava passear na rua da Praia, ir ao cinema, participar de várias atividades próprias da juventude, que gostava de jogar vôlei, ler até de madrugada, comer pipocas e bala americana, em plena praça da Redenção, fosse se apaixonar por um moço simples do interior, sem conhecer outros horizontes que não fossem os limites da sua amada terrinha?
O toque da campainha me faz regressar do meu devaneio. Ligeira, atravesso o corredor e abro a porta lateral. Minha vizinha e amiga de muitos anos ali está e observo, num relance, que para ela também o tempo foi ingrato. Mas seus olhos são cheios de bondade.
--Vi quando a senhora chegou e como não abriu a casa vim saber se está tudo bem.
--Obrigada, dona Olga. Sempre que volto de minhas viagens --desculpo-me-- tenho ainda aquela sensação de abandono e de tristeza, então fico quieta recordando.
A vizinha se retira e eu retorno ao meu passado doce e distante. Sim, continuo a recordar o fracasso do meu casamento, uma história de desamor, um viver, um lutar, um iludir-se e um acreditar. Em minhas fantasias de adolescente imatura, enxergava com olhos de amor e dedicação os detalhes e as pistas que na minha cegueira eu não queria ver. Quando, pela primeira vez, eu surpreendi aquela mão amada segurando a mão de outra mulher, pensei estar flutuando, totalmente vazia de qualquer estrutura. Após o primeiro impacto, por segundos, fui atingida por uma dor tão grande e envolvente que me sufocou. O choro deu o alívio que precisava, choro de mágoa, choro de mulher traída. Só eu e mais ninguém poderia encontrar forças para reagir, e fazer ressuscitar a velha guerreira ferida, que se escondera nas sombras de seus pensamentos.
Durante o tempo em que se desenrolaram esses acontecimentos voltei para dentro de mim mesma e profundamente analisei e refiz toda a trajetória dos passos intensos e fecundos que trilhei. Questiono o meu modo de viver. A ausência de sentimentos me assusta. Nesse momento julgo-me um ser normal: sem ódios e sem amor! Mas estou apática, sem reação, estou afundando numa indiferença desoladora. Por que esse viver constante de ansiedade? Sentir-me só. Tomar antidepressivos? Para quê se, para sair da solidão, bastava abrir a porta e deixar a confiança e a afetividade se instalar e tomar conta de mim. Esse era o quadro da minha vida, quando em reunião familiar, os filhos decidiram que eu devia viajar.
Disseram que eu devia ir para a Serra, ver os lugares lindos que o Rio Grande do Sul possui. Sabiam de minha preferência por aquela região. Eu sempre olhei o mar com um pouco de receio e muito respeito pela sua imensidão. Os passeios na praia me davam a consciência da minha pequenez e acredito que a grande maioria daqueles que brincam e pulam na água nunca pararam para pensar naquela massa líquida que amedronte, mas ao mesmo tempo é grandiosa no seu vai-e-vem eterno.
Volto à minha história. Os filhos pensaram que eu distante, lá num hotelzinho da Serra, cercada pela natureza, pelas flores que eu tanto amava, teria oportunidade de pensar com mais clareza sobre minha vida: seria benéfico para a minha saúde física e mental e me distanciaria dos acontecimentos, o que me daria uma percepção mais justa. Não fiquei aborrecida com a medida adotada por eles. Achei que a decisão tomada, a escolha do hotel, as passagens, etc., todas foram acertadas.
A família é a coisa mais importante, diria, divina. Meus filhos, noras, genros e mais de quinze netos adoráveis, eles representam tudo aquilo que mais amo e respeito. Sempre enfatizei para eles a lealdade como fator básico. Eu os amo, mas não posso deixar de analisá-los objetivamente. Vejo suas qualidades com lentes de aumento e suas falhas, justifico-as, procurando as causas e tentando desculpar seus defeitos. Às vezes, quieta no meu canto, saboreio as delícias de imagina-los exuberantes e participativos, lutando por um mundo mais humano, fazendo coisas e agindo bem melhor do que minha geração no passado. Mas quando a realidade me toca com seus dedinhos lambuzados de doce ou olhos atrevidos e confiantes de uma adolescência florescente como o mel da vida, embriagados do querer e do poder, é aí que humildemente agradeço a Deus por essa dádiva. Sinto que a realidade é bem mais doce que o sonho e que o aqui e agora tem mais firmeza que o ontem. Tenho o conforto e o orgulho de saber que eu sou a origem e o centro desta família maravilhosa, tão cara e insubstituível.
É uma família linda e cheia de surpresas. O filho mais velho, veterinário, amante da natureza, estará pesquisando lá pelo Pantanal ou talvez procurando plantas exóticas ou pouco conhecidas para enriquecer seu herbário. Ou talvez carregando algum índio doente na sua velha toyota, companheira preciosa naquela região inóspita. O quase extinto grupo Ofaié tem em meu filho um defensor preocupado com a demarcação das terras pertencentes a eles, e com as injustiças praticadas contra um desses pobres donos das ricas terras brasileiras. O segundo filho, uma linda menina, tornou-se, com o passar dos anos, o meu braço direito quando chegava um nenê novo a cada ano. Sempre foi, desde criança, ativa e independente. Era linda e certamente nascera para ser uma grande figura no mundo dos negócios, administrando, executando. Deveria brilhar, ser importante. Mas a vida encarregou-se de faze-la sofrer com dores que somente as mães têm o privilégio de ter. Deus em sua infinita sabedoria presenteou-a com um filho portador de necessidades especiais e um marido desumano.
O magistério atraiu a filha do meio. Sensata, calma e determinada, deixou para o irmão caçula os louros de um casamento por amor. Diverte-se. É a animação que falta a qualquer festa. Mas foge do casamento, talvez por ver a infelicidade da irmã mais velha. Cercada por paisagem exuberante por verdes cerros e ao longe, montanhas, a filha menor, tira leite de vacas, cultiva sua horta, cuida de pintos e galinhas. Deslumbrada com toda a natureza que a fascina e a nutre, sofre também a pressão e os limites da geografia sobre sua vida. Casou cedo com um ótimo rapaz, que além de amá-la, tinha uma outra grande paixão na vida: a terra que lhe dava o sustento, os arrozais e os tratores. A pesquisa do solo, o manuseio da terra, os tenros brotos do arroz que nasciam mergulhados na água, tudo isso lhe enchia o peito de um orgulho ingênuo, uma paixão verde-esmeralda que ondulava suavemente sobre os últimos raios de sol que agoniza atrás dos montes.
O arroz é amorosamente inspecionado por seus olhos vigilantes, tirando ervas daninhas, irrigando-os com paciência: tenta protege-los da inclemência dos temporais. Orgulhoso, contempla o fruto do seu trabalho, sorri complacente para as filhas e a esposa, e sonha com um amanhã mais próspero e compensador. Marta, a esposa, acredita no que faz. Vê as luzes da cidade que brilham ao longe e sonha. Eu sei que, tendo um caráter firme, e sendo honesta, vai cumprir a sua parte, como fez seu pai. Dúvidas quanto sua felicidade, sua mãe guarda em silêncio.
Num estúdio simples e espaçoso, sem grandes pretensões, o outro filho, luta para transformar com seus pincéis mágicos, a realidade do seu talento, da poesia que vive dentro de si, seu amor à vida e à beleza. É um poeta de borrões cintilantes, esperança cristalizada em pinceladas com arte, dignas de um mestre. É um homem com a alma pura de uma criança. Ele crê, ele cria, ele é um pequeno deus! Insatisfeito com suas telas, sempre faltando alguma coisa, jamais acha bom o que cria e lá parte ele para um novo retoque, deixando sempre inacabadas telas lindas e originais. Como os dedos das mãos, desiguais, distintos e insubstituíveis, os filhos também formam aquela miscelânea gostosa e surpreendente. Se um é idealista, o outro se realiza nas artes, o outro é fascinado pelas máquinas. Também há o filho que se destaca nos números, no mundo frio e calculista dos negócios. Dessa aparente aridez, ele consegue extrair emoções como o viajante que acha a flor rara na fenda da rocha nua. Meu filho caçula, Fernando, veio até a nossa velha casa com o carro do irmão para levar-me à capital, Porto Alegre, onde se encontrava o restante da turma. Vejo-o agindo assim, movido por um sentimento quixotesco, uma excitação amorosamente filial.
Pensativa, indecisa sobre aceitar ou não a proposta dos filhos, fecho a casa e parto. Todos se reuniram na casa do tio. Falaram, discutiram e decidiram. Pobres queridos. E decidiram que eu devia partir e aproveitar a vida.
--Ela está sozinha. Ninguém vai interferir nos seus planos. Deve ir e aproveitar aquilo que a vida lhe oferece.
--Se ame um pouco! Viva a sua independência, permita que a felicidade, o romance, a aventura, e porque não, o amor, faça parte de sua vida!
--Solte-se, mãe! Procure ser feliz, se puder...
Dividida em dúvidas, pressionada, amorosamente empurrada para um desconhecido que me assustava, e lá me colocaram num ônibus de turismo.
--Cuide-se. Escreva.
Deixei-os. Pela primeira vez sozinha, enfrentei um lugar estranho, sem ter ninguém para segurar minha mão. Pensava ressentida: --Poderia ser diferente?
Sentia-me insegura, meu coração estava apertado como pássaro que, criado em gaiola, não sabe voar com as próprias asas atrofiadas e o horizonte é algo inatingível. Eu sentia medo em face da impossibilidade de usufruir daquela feliz e inesperada liberdade. Vivia num emaranhado de idéias, em busca de soluções sem fundamento, planos fantasiosos e sem estrutura. Sair da minha casa, do meu seguro abrigo e fazer essa viagem era como mergulhar no desconhecido era como virar as costas para o real. Sentia tristeza por deixa-los. E sentia saudade antecipada ao vê-los tão unidos, tão confiantes, me acenando na tumultuada rodoviária. Eles tinham a certeza de haver tomado a atitude certa e conseqüentemente desfrutavam da paz do dever cumprido, do amor testado e externado.
Eu estava gostando e ao mesmo tempo temendo por este passeio. Dois dias antes, havia preparado as malas. As passagens, reservas etc., ficaram por conta dos filhos. O lembrete para regarem as minhas plantinhas, autorizações para o pagamento de água, luz e telefone, tudo isso envolvia o meu mundo, o meu lar. Com os olhos preocupados de dono, deixei bilhetes de aviso espalhados pela casa, desejando tocar em pensamento lembranças prosaicas. E parti.
Um expoente da engenharia automobilística, aquele monstro moderno, de lataria brilhante e polida, vidros fumê, TV a bordo e música ambiente, o ônibus corria a l00 km por hora num asfalto muito liso que faria inveja até as estradas da Europa. Meus olhos fitam a paisagem que passa rapidamente na minha janela e o vento que agita os meus cabelos traz junto o cheiro do mato que, margeando a estrada, joga sobre o asfalto uma sombra úmida e gostosa. Não posso capturar com os olhos tudo que vejo devido à velocidade do veículo, mas isso me deixa empolgada, pois somos formiguinhas neste cenário gigante.
A viagem é longa, a sucessão dos montes, cadeias de montanhas, rios e vales profundos satura de verde a beleza. Na poltrona ao lado, um senhor elegante e solene absorvido na leitura do jornal. Logo na frente vejo duas meninas lindas, ao que parecem, gêmeas. Mais adiante, uma velha senhora carregando grandes sacolas. Os lugares, quase todos ocupados, pessoas simpáticas, algumas indiferentes, anônimas, tirando um cochilo ou tagarelando com o ocupante do lado. O moço bonito que vai guiando serra acima, tranqüilo e lépido, assobia uma música sertaneja, bem atual, que se soma ao som monótono do motor no esforço da subida.
Sem notar o ar condicionado que enlouquece sutilmente, deixo-me embalar e docemente solto as amarras do fantástico. Que a magia do faz-de-conta me apanhe e me jogue na realidade criada pela imaginação. Tenho as mãos e a cabeça carregada de estrelas e os olhos povoados de sonhos. Antes de adormecer, volto meu pensamento aos filhos, e fico admirada. Como eles se agigantaram no espaço que foi meu. Talvez tentando suprir a lacuna que Felipe deixou em minha vida. Vejo-os com olhos mais bondosos, procuro e, ciumenta, guardo suas lembranças, seus valores. Um por um eles desfilam por meus olhos fechados e, com ternura saudosa sinto-os, ao final daquela tarde, muito perto de mim.
Percebo que está anoitecendo. Sinto dores musculares nas costas e recordo como antigamente era fácil e até gostoso subir em trens, viajar no ônibus, carregar pacotes, levar criança no colo, pela mão ou na barriga, e ter ainda vontade de rir, olhar vitrines, admirar as flores dos parques, me divertir, até sentir emoção de ver um desfile da Semana da Pátria. Agora olho, apreensiva, os degraus, e me preocupo com escadas que tenho que galgar. Será que o corpo gasto e em declínio, faz por birra petulante em não aceitar suas limitações? Quer ser jovem, olha com desdém o ridículo, desconhece suas fragilidades. Não aceita conselhos de ninguém, aliás, aceita, mas não os cumpre. Dá para entender?
Uma parada brusca. Barulho de freios, e sinto-me jogada sem proteção, para frente, para o vazio. O corpo relaxado na poltrona, semi-adormecido, não reagiu. Os reflexos tardios me surpreendem. Seria uma queda ridícula. Mas o vizinho da poltrona me segurou.
--Desculpe senhora, por acaso machuquei seu braço? O momento era de urgência.
Agradeci, meio sorrindo, meio assustada, sem graça. Prometi a mim mesma, ficar atenta durante a viagem e parar de sonhar. Uma boa parte da viagem havia transcorrido e eu já perdera parte do encanto e interesse. Começava a sentir pena por mim mesma. Meus olhos fitaram a paisagem. Meu rosto estava tranqüilo, bem comportado. Minhas mãos agora descansam entrelaçadas e suaves no meu colo. Por dentro, entretanto, uma angústia subia o meu peito, uma tentação de sacudir as pessoas daquele ônibus, uma vontade imensa de gritar e falar-lhes de seu egoísmo.
--Vocês só olham para si mesmos e esquecem a solidão daquele que lhes está próximo!
É gostoso ouvir vozes amigas, cordiais. Sentir solidariedade, o amor vibrando no ar.
--Por favor, não reparem esses olhos cansados. Vejam somente uma mulher madura, viva, forte, que tenta viver no palco da vida, sua derradeira performance. Exaurida pelas emoções que, por serem ocultas são mais devastadoras, componho uma fisionomia distante, fria, porém não menos inteligente. Enquanto meus olhos atentos continuam captando a paisagem que foge velozmente, sonho.
Quem conhece a serra gaúcha, já pôde perceber seus impenetráveis vales, que de tão profundos, escondem minúsculas casas e o reflexo prateado de algum córrego. Por aqueles lados de Bento Gonçalves e Caxias do Sul, vindo de Porto Alegre, passamos por lugares lindíssimos: montanhas, pequenos vales, como as pinturas bucólicas de John Constable, que usava pinceladas fortes em paisagens simples. A floresta nativa de vegetação verde-escura, sombria, formava longas extensões completamente desabitadas, desconhecidas, e que eram observadas com respeito. Aqui na segurança do ônibus, a natureza me parece misteriosa, estranhamente rodeada de trepadeiras floridas, cipós e flores agrestes que a abraçavam. As luzes da cidade já eram vistas ao longe brilhando, parecendo minúsculos vaga-lumes, dando boas-vindas para os pobres viajantes, saudosos, cansados e apressados.
As rodoviárias são todas semelhantes, barulhentas e coloridas. Nelas acontecem sempre coisas parecidas. Multidões heterogêneas, indiferentes. Alguns parecem perdidos no tumulto. E há sempre alguém a procura por alguém. Carregadores gritam oferecendo seus serviços. Malas ficam sem os seus donos e donos aflitos procuram suas malas. Um pouco assustada suspirei aliviada pelo bom êxito da viagem, e agradeci por mais essa etapa vencida. Peguei um táxi, dei o cartão com o endereço ao motorista e com grande curiosidade pesquisava as ruas centrais, os jardins e as avenidas.
Rumamos para o hotel que ficava localizado na parte alta da cidade, afastado do burburinho do comércio, do tráfego intenso e das repartições públicas. Encantada, percorremos uma zona residencial cheia de lindas casas espaçosas, com alamedas e jardins floridos de gerânios e azaléias, onde grades altas nos separavam de cães enormes e pachorrentos. Naquela parte da cidade havia uma tranqüilidade envolvente. O hotel era um velho casarão que certamente já conhecera melhores dias. Ele estava plantado na parte mais elevada da região e era perfeito para o repouso e o laser.
O quarto era simples. E o sono foi profundo, sem sonhos ou pesadelos. Pela manhã ao abrir a janela me deparei com um cenário cinematográfico. Altas montanhas me fitavam distantes e o sol dissipava lentamente aquela bruma que ofuscava a transparência atmosférica sobre a cidade. Ao me dirigir para o refeitório tudo era surpresa e o odor das roseiras, a limpeza escrupulosa e o carinho do pessoal à minha volta, me davam a certeza de que aquele refúgio me traria de volta a paz e novamente o gosto pela vida.
--Bom dia.
Surpresa, reconheci o homem distinto que, sentado junto a uma das mesas, me cumprimentava. Era o mesmo cavalheiro que no ônibus evitara minha queda. Envergonhada, lembrei-me que tivera aquela idéia maluca lá no ônibus e agora perturbada me perguntava:
--Será que ele leu meus pensamentos?
Ali, na claridade daquela manhã, cheirando a campo e com sabor de mel, respondi evasivamente, encaminhando-me para uma mesa sob a janela. Mentalmente me parabenizei por haver vestido algo bem apropriado ao ambiente. Continuava com o meu jeito bem feminino de ser, apesar dos anos. Pelo canto do olho vi o tal senhor caminhando em direção a varanda, onde grandes e confortáveis poltronas de cana-da-índia convidavam ao relax. Fico tranqüila. Alimento-me bem, com queijo fresquinho, leite, mel, pães e doces caseiros, uma variedade de patês e salames produzidos na própria região. Após terminar a refeição pensei em ir para o quarto, mas uma curiosidade, bem feminina, fez-me mudar de idéia. Levantei-me e fui para a varanda. Mal adentro aquele espaço e percebo o homem lindo que vem ao meu encontro. Sorrindo, convida-me para sentar e fica em minha companhia.
--Gostaria de conversar um pouco? Afinal somos velhos conhecidos, não?
--E por que não? Parece que estamos aqui para repousar. Algo do tipo férias para quem está sempre de férias...
Ele ri. Afasta a cadeira para mim e instala-se confortavelmente. Uma conversa amena, gostosa nos entretém por horas a fio. Chamava-se Mário Thomas Vernez. Era industrial aposentado e encontrava-se viúvo há quase quinze anos. Apesar de afastado dos negócios continuava na ativa, viajando pelo Brasil e exterior, fazendo contato para a firma que era dirigida pelos filhos. Morava em um pequeno apartamento em Porto Alegre e agora, em Cerros Verdes --essa cidadezinha encantadora onde me encontrava--, tiraria um descanso. Mais tarde viajaria para um lugar próximo, a uns 60 km dali, onde vivia sua velha mãe. Essas confidências despertaram em mim o desejo de também contar coisas de minha vida, mas uma preocupação natural, sendo ele ainda um desconhecido, me freou. Existe em mim uma facilidade desmedida de confiar em todo tipo de pessoas. E foi isso que me permitiu ao longo desses dias lindos, tantas confidências e trocas de informações.
Fazemos pequenas caminhadas por veredas selvagens explorando os arredores. A brisa suave que vinha do vale rapidamente se transforma em ventos gelados que as frentes frias, muito comuns no Sul, convidavam ao aconchego, à lareira e à intimidade. Longas tardes de conversação, muita simpatia, bálsamo que suavizou as feridas, criando entre nós um laço de amizade e companheirismo. Pequenas excursões ao centro comercial da cidade nos deixavam alegres e cansados, pois as ruas tinham descidas acentuadas e longas subidas. Estávamos tão carentes e envolvidos, que os livros e as revistas que trouxe para distrair-me ficaram esquecidos no fundo da mala.
Quando vim para esse lugar, por sugestão dos filhos, tinha a nítida certeza de que a minha vida havia se transformado numa verdadeira droga. Tanto podia vivê-la como jogá-la na lata de lixo, que tudo daria no mesmo. Eu não era importante. Era tratada com indiferença --sem maldade é claro--, por aqueles a quem eu mais amava. Era esse sentimento, entretanto, que dava àquele homem a minha frente, uma importância maior, uma projeção gratificante para minha vida naquele momento.
Parecia brincadeira e talvez, na minha idade, a palavra apropriada fosse desequilíbrio, interiormente eu ria, e dizia para mim mesma:
--Deves estar numa carência enorme, sua idiota! Cuidado! Coisa boa não anda solta por ai, dando bandeira. Não vai te dar mal. Não te esqueças que és mãe de família e tens um currículo de vida. Não vais resvalar ladeira abaixo, só pelo fato de alguém haver te dado um pouco mais de atenção.
Passaram-se sete dias e a minha vida estava completamente mudada. Eu dera um salto no desconhecido. Mário já fazia parte do meu dia-a-dia. Almoçávamos juntos, na varanda, como dois bons amigos. Gosto de ouvi-lo discorrer sobre os diversos lugares do mundo onde já percorreu. Gosto de ouvi-lo falar sobre literatura, arte e teorias filosóficas. Inteligente e culto, porém de modo singular: não havia divergência entre nós. Para o meu escasso conhecimento, ele era a fonte.
O restaurante cheio de gente jovem, os garçons correndo solícitos. A fumaça traz junto o cheiro do churrasco que vinha de uma ala do estabelecimento. Tudo isso ao som da gaita chorona bem ao gosto da tradição gaúcha. Sentamo-nos à mesa, perto da janela, onde a noite fria e escura nos espiava por entre as dobras do cortinado rústico, porém de bom gosto. Sensibilizava-me a maneira gentil como Mário cuidava para que tudo estivesse confortável para mim. Preocupado, apressa-se em sugerir o cardápio: pequenos detalhes delicados, gestos que revelavam o tipo de homem que estava a minha frente. Esse acontecimento, o jantar na churrascaria típica foi, sem dúvida, especial. Senti-me importante, respeitada, me encontrei. Aflorou em mim a mulher, com magnetismo e charme, como toda mulher sonha.
A caminhada de volta até o hotel, naquela noite fria, foi o encerramento perfeito e que marcou a minha vida. Seria lembrado com doçura e expectativa. Depois de desejar-me Boa Noite, o aperto de mão, os olhos nos olhos, e o despertar medroso acalentou um sentimento mais profundo, uma interrogação ficou suspensa entre nós. Deitada, sozinha, naquela cama estreita e prevendo que algo incessante e forte estaria por vir, sinto novamente a angústia, a velha companheira daqueles que se julgam incompreendidos. O coração parece que vai renascer, mas ainda dói, magoado. Mágoa de não ter sido gente para alguém. Porque gente (ainda mais quando ama), não se larga assim nas voltas do caminho. Só jogamos fora objetos que não servem mais, quando quebrados ou sem serventia e importância. Pessoas, nós as respeitamos, as amamos! Meu ego ferido jogava duro sobre mim e tudo a minha volta era uma nuvem de tristeza e dúvidas. Ou era o amor, como eu queria crer?
Aflita, eu rolo na cama e sem querer, num movimento brusco, sinto a dor. Como um animal selvagem que fica de tocaia e ataca de surpresa, a dor me assalta e me domina. Com pinceladas de drama há um retrocesso, e tudo está ali: os sangramentos, o medo, os exames, a cirurgia, o choro... A torcida fervorosa de todos para que fosse benigno e a esperança despontando trêmula num ambiente nervoso, porém de fé. Recuperação lenta, dias de dor, sombrios, onde a preocupação e a tristeza se alojaram até nas paredes da casa. Os amigos chegaram e partiram. Todos deram o seu apoio, sua solidariedade. O tempo passou. Tragada pela ciranda louca da separação, no desmoronamento de uma união que parecia tão sólida, esqueci da doença, quis acreditar na cura. Proibi a todos de falar no assunto. Tolice da minha parte! Meu lado infantil fabricando um faz-de-conta, uma tentativa vã de ludibriar a seqüência dos acontecimentos e da vida. Trêmula, tive a certeza que ela voltara, me devorando lentamente, matando minhas esperanças, meus sonhos, minha vida.
A noite escura da dor estava dentro de mim. Eram horas longas e amargas, num calidoscópio de lembranças suavizadas pelo pranto manso que de quando em vez me lavava a cara. A madrugada chega e com ela o alívio. Antes de cerrar os olhos para o descanso do corpo e da alma, um pensamento ainda me assalta:
--Quanto tempo? O que me separa da grande viagem?
Se Felipe estivesse aqui, os filhos já adultos e com a estabilidade econômica poderíamos, de mãos dadas, ver o mundo que não tivemos tempo de ver; poderíamos caminhar por lugares onde não nos foi possível percorrer. Falar de tudo aquilo que sufocamos por um tempo demasiadamente longo dentro de nós mesmos era preciso. Porque o dia só tem vinte e quatro horas e o nosso era multiplicado. Agora que eu precisava tanto de um ombro amigo, um olhar doce para acalmar o meu pavor e medo, agora que eu precisava de braços fortes para me ajudar a ver horizontes onde a doença punha limites, justamente agora eu estava só. Olhos inchados e o peso da idade e da doença já se evidenciavam nas faces murchas, sem brilho. Mas ainda restava um pouco de ânimo. E cá estou eu com uma maquiagem discreta e necessária, com uma roupa adequada para sair. Quero caminhar sozinha um pouco. Quero pôr em ordem os fatos, fazer um balanço de tudo que está acontecendo e tomar algumas decisões.
Naquela manhã fria, uma rápida caminhada me levou ao largo da praça, abrigada por sebes e hibiscos, todos floridos nesta época do ano. Sento num velho banco carcomido pelo tempo e sinto o frio da pedra. Penso em Mário, penso na minha vida e percebo a dor do abandono. Penso também na importância de um companheiro. Mário havia se tornado importante. Aprendi a admirá-lo. Suas maneiras gentis, sua conversa leve e culta, seu aspecto sadio e honesto. Principalmente o carinho, a amizade, o respeito, e talvez o amor que vejo no fundo dos seus olhos.
Apesar de haver passado por tantos altos e baixos, num cotidiano tumultuado, eu continuava acreditando e apostando no ser humano. Nem a idade haveria de me tornar insensível ou desconfiada. Acredito que jamais sufocarei a garota ingênua que mora dentro de mim. Nunca serei cem por cento adulta, serei sempre a adolescente romântica e o amor será sempre um doce encantamento. Enruguei a cara, branqueou-se o cabelo, mas não perdi o sorriso crédulo e o brilho confiante do olhar sobre as pessoas e as coisas. Talvez, por isso ao ser abandonada, desmoronei. Era necessária uma reciclagem nos meus sentimentos. Haveria de se travar um duelo entre a mulher e a criança, entre o sonho e a realidade, entre o sorriso e a dor.
Surpresa de tudo percebe querer aquele homem. Eu tinha sede de carinho. E Mário era a resposta para os meus anseios nutridos em noites mal dormidas: era o diabo de meu inferno particular. Eu nem sei se resta ternura em minha boca, mas ela pede beijos, quer amor, música, sonhos, perfume, vida. Mário me encontrou ao cair da tarde, preocupado com meu aspecto, queria saber se estava tudo bem, tudo tranqüilo. O convite para um domingo diferente acaba sendo o prêmio que ganho. Numa cidade próxima realizava-se uma expo-feira regional. Combinamos ir lá bem cedinho. Telefonei para minha família e fui à farmácia prevenir-me de uma possível crise.
Reservei a noite para melhorar um pouco a aparência. Banho de óleo nos cabelos ressecados, compressas nos olhos doloridos, enfim, retribuir dessa forma todo carinho que me envolve. Decidi ter uma longa conversa com Mário, onde o jogo seria limpo, um cara-a-cara honesto. Há em mim uma necessidade quase dolorosa de me expor, numa catarse sofrida, Tanto o feio e o bonito vão mostrar-se numa dissecação imprescindível.
Uma imensa multidão acotovelava-se no espaçoso pavilhão, onde expositores das mais variadas indústrias da região disputavam a atenção dos visitantes e possíveis compradores. Do doce caseiro ao mais sofisticado produto da industria moveleira. Cerâmicas artesanais, belíssimas confecções prêt-à-porter, uma infra-estrutura superorganizada, construída no alto de uma pradaria. Tudo isso ao som mecânico de um rock da pesada, bem ao gosto da juventude. Passarelas, estrategicamente localizadas, onde meninas com corpos esculturais desfilam as ultimas criações de costureiros nacionais. Balões em mãozinhas infantis davam colorido ao cenário e os risos explodiam no ar, pois ele é farto e fácil naqueles corações leves.
Almoçamos numa bem montada lanchonete, com atendimento moderno e comida típica de sabor especial. Durante o resto da tarde perambulamos aqui e ali. E como se houvesse um tácito acordo entre nós, nenhum dos dois falou em voltar. --Porque não falo o que havia programado? --Porque, como dois cúmplices, não nos olhamos e, tendo as montanhas vestidas de entardecer, deixemos aflorar o que queríamos, sem ter necessidade de falar?
E quando Mario, de mãos dadas comigo, se dirigia até uma simpática pousada, eu me neguei a pensar. Neguei a mim mesma o direito de questionar o certo e o errado. Naquele momento esqueci as minhas limitações, minha timidez e o meu corpo que já mostrava cruelmente o desgaste da idade, esqueço tudo. Minto. Não esqueço tudo. Simplesmente deixo de lado, entrego-me sem medir as conseqüências. Numa nova e maravilhosa concepção, ouço sem medo os falsos pudores. Amanhã pensarei no meu ato. Irei analisá-lo com sensatez. O acordar me trará surpresa, mas nessa noite eu quero ter a ilusão de ser amada, ser sadia e feliz.
O deslumbramento da noite foi perfeito e compensador. Foi embalado de ternura e carinho. Foi a noite do desabrochar de almas amigas, lavadas com lágrimas mansas a correr num rosto sofrido. Vivi a paixão de uma vida deitada no círculo de braços cheios de paz. Sufoquei todos os remorsos. Desconheci todos os apelos da consciência e me entreguei por inteira a esse impulso de carinho e desejo. Deliberadamente ignorei um passado de dedicação, tendo a certeza que cobranças e arrependimentos haveriam de povoar minha cabeça. A noite foi pequena para as nossas descobertas. Inacreditável, naquela idade, tanto ardor ainda exista, como que latente, paixão outonal explodindo dentro de nós, no quarto, no mundo.
Muito tempo depois, quando o ritmo de nossos corações se abrandou, o vento da paixão acalentou nossa ansiedade. E o que restou foi o doce calor da ternura, que dormia sonolenta a nos envolver. Naquele momento tive certeza que poderia ser novamente feliz. Lado a lado, cansados e felizes, na semiescuridão complacente, um leve constrangimento se apoderou de mim. Desnundar-se, de corpo e alma, é angustiante para uma pessoa como eu. Sempre fui prisioneira dos preconceitos e vivi flutuando num mar de limitações. O escritor Máximo Gorki sempre deixou transparecer em suas personagens, sua origem humilde, aquele que nasceu em baixo e procura subir. Como eu me identifico? Como entendo isso? Porque os meus traumas, os meus medos e inseguranças, eles interferem sempre nas horas de assumir um compromisso, em especial nos momentos de recuar ou de prosseguir. O amor, penso também, é uma forma de escravidão. Não amarga, mas doce. E, quando ele pintou o horizonte de púrpura, as malhas da dúvida já me envolviam. --Resolvo ficar e me entrego, ou encaro tudo como uma coisa transitória?
Era o último dia em Cerros Verdes e após o jantar resolvemos prolongar aquele tête-à-tête e dar uma caminhada. Bem agasalhados, com o coração aquecido, semelhante a estudantes entusiasmados, quem nos visse não perceberia a paz e o carinho que viajavam juntos de nossos passos lentos. Percorrendo nossos corpos, unindo nossas mãos, o toque final era nossas pupilas brilhantes, mergulhadas um no outro. A paisagem tem tons de vida, as montanhas punham sombras escuras no horizonte e a lua nos intimidava com sua majestade. O ar era puro e o vento suave tocava em nossos cabelos, fazia minha saia apegar-se nas pernas dando-me a irreverência de garota. Estávamos tristes pela separação que se aproximava tentando nos organizar o futuro. Sem nos apercebermos da escuridão da rua deserta, do perfume das flores ou das decidas íngremes, formos subitamente abordados.
O assalto foi rápido, surpreendente, violento. Em poucos segundos, sem possibilidade de qualquer reação, Mario foi jogado ao chão. A rua estava escura e deserta. Mário caído, sem qualquer movimento e eu sozinha em estado de choque. Mário desacordado, talvez com alguma fratura grave, fora atingido por uma barra de ferro. Estou paralisada de pavor e à medida que o torpor e a surpresa lentamente se afastam, eu gradativamente amoleço, me diluo em pavor e medo. Não grito por socorro, não choro como seria normal. Eu simplesmente me ajoelho ao lado do corpo inerte, e tento vê-lo na escuridão. Não tenho noção da extensão do ocorrido, mas meu lado prático me avisa que Mário necessita de cuidados urgentes e socorro médico. Indecisa, investigo as adjacências em busca de auxílio, ao mesmo tempo em que tento avaliar as condições de Mário. Na pouca claridade, vejo-o pegajoso de sangue, porém não sabia onde.
Havia uma casa bem no começo da rua que se precipitava em declive, meio oculta pelas folhagens. Resolvi bater. Em minha caminhada rápida e angustiada, enxergando somente um lado da casa e rezando intimamente para que houvesse um telefone no local, chego e bato palmas. Os cachorros vêm ao meu encontro. Desesperadamente tento correr, mas os meus longos anos sobre a terra, nessa hora pesam bastante. Tropeço e caio. Sou mordida e arranhada por aquele monstro de olhos faiscantes e goelas vermelhas. Aquela baba nojenta, misturada ao sangue dos arranhões e mordidas, numa fração de segundos, pensei que seria o meu fim.
Os rosnados e meus gritos de lamentos acabaram por trazer socorro. Misteriosamente tudo pára. Abro os olhos e um vulto alto, possante, segurava os cães a poucos centímetros de mim. A luz que vinha da varanda, batendo nas costas do vulto --que presumi ser o de uma mulher--, deixando-a na sombra, impedia-me de vê-la bem. O corpo dolorido e a dor das feridas paralisaram minha voz: só gemo.
--Quem é você? E o que faz aqui no jardim?
Mal conseguindo articular as palavras, explico o que aconteceu e peço-lhes ajuda. Chamou com voz forte em um inconfundível sotaque italiano:
--Marcus! Venha até aqui!
Um homem gordo e calvo aproximou-se vindo do interior da casa. Auxiliado pela mulher me ajudaram a levantar e me conduziram até a varanda. Identifiquei-me repetindo todo o atentado e o senhor calvo escutou-me com atenção.
--Por favor, telefonem para o hospital, para a polícia, meu amigo precisa de ajuda.
Fui saindo, caminhando rua acima, tendo os ossos doendo terrivelmente. Percebi que o senhor calvo e gordo, vinha logo atrás, resfolegando. A esposa ficara telefonando. Faltando poucos metros para chegar ao local, não avistei mais o vulto caído de Mário e o horror me dominou.
--Teria me enganado de local, por ser a noite muito escura? --Mas não! O local era aquele mesmo e ele não estava lá! Como um dique que se rompe, todo conjunto de fatos do meio da noite me atingiu com força total. As lágrimas vieram incontroláveis amenizando o medo. A angústia fez um torniquete em minhas entranhas e o turbilhão que cerrava minha garganta diluiu-se no pranto.
Seu Marcus, o senhor calvo e gordo, dono dos cachorros, sugeriu que falássemos com o policial da ronda. Ele, como morador antigo, sabia a hora e o local onde poderíamos encontrá-lo. A dor das mordidas e o impacto da queda no jardim transformavam aquela caminhada insuportável. Configurou-se inferno trotear por aquelas ruas que subiam e desciam como um trágico tobogã. Duas quadras descendo em direção oposta ao centro da cidade, foi ali que achamos o guarda. Calmamente ele nos deu todas as informações: que o ferido havia sido removido para o hospital, pela patrulha e que os policiais já estavam em diligência percorrendo os locais mais suspeitos, ou seja, que a caçada já havia começado.
Um suspiro de alívio e me permito agora ter pena de mim mesma. Olho com simpatia para minhas feridas: duas eram relativamente profundas, as outras apenas superficiais. Então me dei conta da situação ridícula em que me encontrava. Sou uma simples dona de casa, completamente alheia ao assunto policial, assalto e corridas no meio da noite. Acostumada à proteção da velha casa, ser poupada de ver ou sentir o lado frio da vida, estava me sentindo como personagem principal numa história irreal e maluca.
No hospital tudo era imaculadamente limpo, uma brancura que ofuscava e o solado de borracha das sapatilhas das enfermeiras davam uma aparência de fantasmas deslizantes e indiferentes. A tensão que há nestes corredores não perturba os seus comportamentos, nem alteram suas fisionomias serenas. Seu Marcus havia desaparecido, encontrava-me sozinha, meio perdida, suja. Vaguei por aquele lugar até achar no hospital uma pessoa de plantão. Após as explicações e preencher uma ficha alguém fez os curativos em mim, desinfetando as feridas com uma mistura de iodo. Indicaram uma saleta, onde seria atendida pelo médico. Estou mais calma e começo a raciocinar com clareza. A ironia do destino a essa altura dos acontecimentos deveria estar rindo a toa. E foi assim, dessa forma, que me encontrava envolvida neste louco episódio.
Eu me sentia um pouquinho eufórico porque afinal algo novo tinha acontecido. Eu me encontrava, já, no outono da vida. E como se estivesse dentro de uma história novelesca, com sangue, polícia e tudo que tinha direito, isso tudo parecia uma loucura! Eu, que sempre evitava confusões, estava mergulhada até o pescoço numa delas, e essa era de grandes proporções. Sou aquariana e no fundo estava achando legal aquela aventura. O imprevisto sempre teve um sério fascínio sobre mim. Lembrei da família de Mário, naturalmente teria de visitá-la. Mas o certo é que não sabia o meu papel nesta história toda. Por acaso não estaria me envolvendo, ultrapassando a barreira do razoável? Tenho a obrigação de assumir essa parte? Quem sabe o hotel se encarregasse disso. As perguntas que eu própria me fazia ficaram sem respostas.
Pelo crachá de identificação que balançava ritmicamente preso ao bolso do jaleco vi que era o médico que se aproximava. Perguntou se era eu a responsável pelo seu Mário Thomas. Avisou-me que ele estava fora de perigo e que sofrera uma pequena cirurgia, mas que tudo correra bem. Foi retirado um coágulo do cérebro e teria de ficar hospitalizado por uns seis dias. Fiquei impressionada com o fato dele ter sido tão rapidamente operado. Agradeci a dedicação do médico e perguntei sobre a possibilidade de ver o paciente. Olhando para o relógio de pulso que marcava três horas da madrugada, alegou que Mário estava sobre efeito de anestesia na UTI. Só permitiu uma olhadinha pelo visor da porta. Chocou-me sua forma imóvel e branca, deitado numa cama alta, com a cabeça envolta em ataduras. Mal consigo distinguir sua imobilidade que dava a impressão de morte e de abandono. Uma imensa ternura apodera-se de mim e me sinto responsável por aquela pessoa ali sozinha, indefesa, prisioneira das limitações de seu corpo. A mãe que vive dentro do coração de cada mulher, teve vontade de afagar aquela face pálida e tranqüilizá-la dizendo que alguém estava velando por ele:
--Estou aqui, cuidarei de ti, não te abandonarei. Em pensamento lá estava eu, forte e protetora. E ele, o menino frágil e indefeso. Não tinha mais medo e sim uma urgência de fazer algo, de servir!
Fui para o hotel. Eu estava surpresa comigo mesma pela lucidez como havia agido e reagido. O plantonista do hotel, cheio de curiosidades, desejava saber detalhes sobre o assalto, pois a notícia já havia transpirado o lugar do ocorrido. Paguei o táxi e fui fazer rapidamente uma ligação para minha casa. Custou muito para eu ser atendida visto o adiantado da hora. Minha filha, assustada pelo telefonema tardio, não conseguia entender o porquê. O sono fazia seus olhos pesarem e a cabeça trabalhava lentamente. Por fim, desperta, quis saber os detalhes. Avisei que antecipara o meu regresso, conversei mais um pouco e desliguei.
Depois de um banho quente, examinei criticamente o meu estado geral e concluí que dos males o menor, eu ainda estava inteira. Dormi um pouco. As mordidas dos braços e das pernas são superficiais. Reanimei-me com o banho. Depois de um chá quente, ainda sem sono, vou até a portaria ver se consigo o endereço ou telefone de Mário. Não tinham. Ele era mesmo um andarilho: não tinha telefone celular e o telefone do apartamento em Porto Alegre estava mudo. Solidariedade, um pouco de amor e amizade, me empurraram para dentro desses acontecimentos, obrigando-me a tomar decisões contrariando meu modo de ser. Não posso cair fora simplesmente, sem um pretexto aceitável. Não posso deixá-lo entregue a mãos estranhas, num lugar desconhecido.
Volto a portaria, na esperança de algum registro, alguma observação que me orientasse ou me levasse a um possível endereço de Mário. Nada. Penso melhor e acompanhada do gerente, abrimos o seu quarto. Suas roupas estavam numa mala, tudo de ótima qualidade, nada acrescentou. Tudo bem examinado, papéis sobre o criado-mudo. Havia uma pasta com faturas e também uma carta. Pedindo mentalmente desculpas ao meu amigo pela indiscrição, dei uma passada de olhos e cheguei à assinatura: tua mãe. Precedia de um lugar de nome Santa Vitória e nada mais. A carta era pequena, falava da saúde, das frutas, cães, lagos e saudades.
Desanimados, resolvemos ir para a cozinha tomar um cafezinho quente. O dia já amanhecia, pondo tons avermelhados nas montanhas azuis e criando uma paisagem paradisíaca. Num impulso, desses atos que sempre terminam em dor de cabeça, assumi tudo: eu daria um jeito! O dono do hotel estava com pouca vontade de colaborar, devendo achar tudo aquilo aborrecedor. Eu mesma me desconhecia. Essas atitudes tomadas por mim eram desconcertantes. Fui para o quarto e mergulhei o rosto na água gelada da torneira. Olho criticamente o espelho e digo: não tenhas medo, vá em frente! Fico um pouco decepcionada com a velha senhora que me fita no espelho. O lado egoísta, a outra metade de mim me diz: vai para casa, deixa os acontecimentos seguirem seu curso, afinal ele não está aqui por tua causa, isso é uma simples casualidade!
--Será que existe alguma obrigação de minha parte, pelo fato de haver existido um simples relacionamento entre nós? Pergunto e eu mesmo respondo: moralmente, sim. Eu lhe devia isso! Ele merecia minha simpatia e meu apoio. Isso porque ele deu atenção a minha insignificante pessoa. Fez-me sentir vivo, me valorizou como mulher, respeitou meus pontos de vista e principalmente me deu carinho. Por isso, tomei algumas providências. Primeiro iria até o hospital, saber notícias; depois iria a delegacia e a rodoviária, onde colocaria em prática o plano que idealizara. Assim pensei, assim fiz. Mário estava melhor. Estava instalado em um quarto espaçoso, ensolarado, tendo ao fundo alegres cortinas floridas sobre amplas janelas que se abriam sobre o vale. Aproximei-me da cama, compondo no rosto um sorriso encorajador. Era bom vê-lo recuperado. Se não fossem as ataduras, até que estava apresentável. Olhou-me com uma interrogação no olhar. Percebia-se que eu era uma estranha para ele.
--Mário, meu amigo, sou eu, sua vizinha de quarto do hotel onde estamos hospedados.
Ele, com dificuldade, disse não se lembrar de nada, estava confuso. Não conseguia, estava chateado, pediu um pouco de água, e lentamente foi fechando os olhos, ainda sob o efeito de algum sedativo. Adormeceu. Saí na ponta dos pés e a enfermeira que me aguardava no corredor, falou:
--O Dr. Cláudio quer falar com a senhora, por favor, me acompanhe. Levou-me a uma pequena sala, pediu licença e retirou-se. Antes que meus olhos observassem o ambiente de bom gosto a minha volta, o médico entrou acompanhado de um policial e um senhor. O médico muito jovial e confiante me apresentou ao delegado após um forte aperto de mão. Ambos se apressaram em me deixar à vontade. A primeira pergunta foi sobre o estado das minhas mordidas. Abaixou-se e com os dedos experientes e delicados, sob um olhar atento, avalia o estado de minha perna onde havia um enorme hematoma e muita dor ao toque. Um meio sorriso confirmou que tudo estava correndo bem.
--Dona Elvira, queria falar-lhe sobre o senhor Mário Thomas, e o delegado também necessitam de alguns esclarecimentos. Como a senhora verificou, seu amigo aparentemente está bem. Sofreu um traumatismo craniano e tivemos que operá-lo. Um coágulo e fragmentos de ossos que, se não fossem removidos rapidamente teriam sido fatais. Isso devido à localização. Ele apresenta, agora, um quadro geral bom, uma pequena amnésia, que deve ser passageira, mas não podemos afirmar quanto tempo levará o seu completo restabelecimento. Vamos esperar.
Havia também um corte profundo na altura dos rins. Acho que após ter sido brutalmente golpeado, caiu e novamente atingiram-no pelas costas com algo duro e cortante. O delegado de polícia era um homem em fim de carreira e cheio de tédio com esses acontecimentos cotidianos. Tomou algumas notas, dados que forneci e também lhe falei do meu plano de ir a localidade de Santa Vitória procurar a mãe de Mário.
Naquelas estradas malucas e fatigantes, a viagem era cansativa e o motorista do ônibus avisou que após eu descer por uma estrada carreteira, teria de caminhar oitocentos metros aproximadamente e daí então pedir informações. Mal o veículo desaparecera na curva do caminho, uma pequena nuvem se condensou no horizonte. Eu estava sozinha naquela estrada tranqüila e dolosa formada por eucaliptos gigantes e pinheiros centenários. O ar perpassando entre as folhas lustrosas, além de seu doce murmúrio, uma brisa leve e perfumada, me era de todo refrescante. Eu e o mundo verde e silencioso. Pensativa, vou caminhando lentamente. Surpreendo-me com uma verdade que só agora se concretizava: o subterfúgio.
Toda a vida eu sempre fora uma mulher solitária, sozinha. Mesmo no meu casamento, até na hora doce do amor, sempre houve a sensação se servir e ser usada para os orgasmos do meu homem. Sempre a margem, acabei por aceitar passivamente aquilo que eu considerava o máximo dos direitos. Por não ter identificado esse sentimento a tempo, somente agora analiso e percebo que sempre vivi magoada e com frustrações. Afastei os pensamentos negativos e lentamente comecei a subir a trilha estreita e úmida em direção a tal casa que haviam indicado.
Após uma breve caminhada, a certa altura da estrada, meio encoberta pela vegetação, num emaranhado de três-marias e jasmins, surgia a casa. Simples e sólida, era uma dessas típicas casas do início da colonização, construídas pelos imigrantes italianos e alemães que na região sul aportaram. Ao chegarem por essas paragens, ergueram casas fortes, grandes e hospitaleiras. Sou bem recebida. Informaram que a propriedade que procuro está a uns dois quilômetros dali. Havia apenas um vale e quando eu alcançasse o planalto, eu a encontraria. Não tinha como errar.
Depois de um delicioso refresco de acerola, aceitei o oferecimento da senhora, para que o peão me acompanhasse até um trecho do caminho. Despedi-me da gentil dona do sítio e parti. São dezoito horas e o Ângelus ecoa pelo vale. Um bimbalhar de sino distante, talvez uma capelinha. Logo a noite me pegará no caminho, dificultando a minha missão. O mato estava silencioso, sem os ruídos habituais dos animais que ali viviam. Até as borboletas, mariposas e cigarras aguardavam estáticas ao anoitecer. Os meus passos são abafados pelo tapete de folhas mortas, que ao serem pressionadas, exalam um forte e penetrante cheiro de mofo. Eu avançava e meus olhos já um pouco medrosos, porém atentos, investigava cada moita, cada buraco, pensando em animais que poderiam esconder. Mal-feitores, quem sabe? Ou o perigo de precipitar-me da alta ribanceira ou mergulhar em poças de água, perigosamente ocultas pela vegetação.
De súbito, encontro uma clareira, onde a vista descortinava um grande vale, uma visão maravilhosa. Troncos cortados por machados impiedosos servem para meu rápido descanso. Lá embaixo, a mata foi substituída por plantações que se agarram milagrosamente às pedras das encostas. Há também minúsculas casinhas de agricultores que vistas, assim de longe, pereciam uns bordados em alto relevo, no bastidor gigantes do Rio Grande. Mal diviso ao longe, no cume da montanha, uma cerração, e me sinto envolta nela. Ela chegou rápida e silenciosa, tão escura que tive frio. Sem rumo certo e desconhecendo por completo a região, entro em pânico. Não consigo me orientar, avanço temendo esbarrar em alguma árvore, ou inadvertidamente cair.
Caminho uns poucos passos. E assim como chegou, rápida e silenciosa, aquela neblina densa, se dissipou. Observo a casa ao longe, sob um céu que se torna azul puríssimo, quase corro na ânsia de chegar. Mas enganosa era aquela distância. O caminho é íngreme e escorregadio. O silencio ao meu redor foi repentinamente quebrado pelo zumbido irritante das cigarras e o coaxar das rãs e pererecas nas poças d’água. Pedras cheias de limo, em águas paradas, deixavam o terreno lamacento e traiçoeiro. Aparentemente firme, porém ao pisa-lo, afundava. Olhando assim, parecia não ser longe, parecia ser logo ali. Mas a trilha perdida, jamais conseguiria alcançá-la antes do anoitecer.
Despenteada, com as roupas sujas, os calçados enlameados pelos vários escorregões, o pânico no fundo dos olhos: tinha vontade de chorar. Sinto fome também. Não sei como, mas venci aquela última etapa e me vi no quintal da moradia. O sol já se escondera atrás dos morros e somente os tons avermelhados do ocaso coloriam as nuvens no horizonte. Bati na antiga porta que era de madeira rústica, da velha casa colonial, e uma voz, com forte sotaque italiano, pergunta abrindo a porta:
--O que deseja?
--É a senhora Marelly?
--Sim, o que posso fazer para ajudá-la?
--Venho falar-lhe sobre seu filho Mario, posso entrar?
--Sim, sim, por favor!
Aquela senhora alta e magra, de olhar desconfiado, tinha na fisionomia marcante, toda a saga dos imigrantes, suas lutas, desafios e vitórias. Cabelos completamente grisalhos estavam presos num coque apertado e suas mãos eram feias, enrugadas e mal tratadas. Foi hospitaleira. Tinha idade indefinida e olhos argutos de uma cor esmeralda. Proporcionou-me uma boa acolhida e após longa conversa fiquei sabendo um pouco da sua história. Era natural da Itália, onde o pai era lavrador no fértil vale do rio Pó, região norte daquele país. Sobreviveram com plantações de verduras e azeitonas, a renda era baixa e a vida quase miserável.
Viera para o Brasil junto com uma leva de imigrantes, para um futuro incerto e laborioso. Tivera só aquele filho e o criara praticamente sozinha, pois o marido morrera ainda jovem de uma mordida de cobra venenosa. Naquele pedaço de terra que haviam comprado, longe de qualquer recurso, nada pode ser feito e, junto com o marido, enterrara ali também suas esperanças e seus sonhos. Dona Cristina, assim se chamava a mãe de Mário, tinha acessos de melancolia. Era naturalmente quieta, carregando sempre a saudade e a nostalgia da pátria distante. Com idade avançada sentia-se ainda rija e afeita às durezas da vida, e não deixavam transparecer todos os janeiros que lhe passaram. Era uma figura ereta, os músculos e as carnes firmes. Dentro de suas limitações criara o filho, amava-o com a passividade daqueles que são temperados nas agruras e na dura realidade. Mas havia em todos os seus gestos e olhares uma grandeza, uma inteligência latente.
Sou conduzida a uma cozinha ampla, com algum conforto. Tinha prateleiras até o teto, onde balaios, potes, queijos e salames brigavam por espaço numa tremenda confusão. Cadeiras de palha, grande mesa antiga, fogão a lenha, geladeira enorme, antiga, movida a querosene, formavam o mobiliário daquela peça. Dona Cristina era viva e sagaz. Conforme eu narrava o acontecido, fazia perguntas claras e chorou quando falei sobre o hospital e a cirurgia. Lágrimas sentidas rolavam de seus olhos acostumados a solidão.
Teria de pernoitar ali, para juntas, no dia seguinte, irmos a Cerros Verdes visitar Mário. A senhora preparou-me um quarto simples, limpo e gostoso. Deitada, mais calma, percorro em pensamento, toda aquela odisséia e por breves instantes sinto raiva da pessoa que me colocou, indiretamente, nesta situação: meu ex-marido!
O dia amanheceu lindo e ali, do terreiro, pude admirar mais uma vez a floresta e os vinhedos que cobriam grande parte do planalto. Nos declives contemplei o gado leiteiro que pastava num equilíbrio fantástico, indiferentes ao perigo de rolarem encosta a baixo. Naqueles habitantes italianos e alemães em sua grande maioria, percebia-se a presença dos costumes europeus. Observando a mãe de Mário, que conduz a charrete, com mãos ainda firmes e experientes, sinto vontade de ser sua protegida. Essa mulher simples me dá segurança. Estou a deriva sem leme, e seu olhar direto me dá a noção exata da sua posição perante a vida. Todo o seu ser, seu rosto, seu passado, os preconceitos, a luta pela terra, tudo está costurado a suas esperanças e suas desilusões.
Após uma viagem cansativa de ônibus, que é chamado pelos moradores de pinga-pinga, chegamos a cidade e fomos direto ao hospital. Dou uma olhada no rosto de Mário e sou esclarecida pelo médico que ele continua o mesmo. Dr. Cláudio não podia afirmar a extensão dos danos ocasionados pelos ferimentos na cabeça. Teríamos de aguardar tendo em vista que cada pessoa reage de forma diferente. Minha missão estava comprida e tristemente achei que devia voltar para casa. Depois de algumas formalidades despedi-me de dona Cristina. Doeu-me o olhar indiferente de Mário, quando eu o beijei e percebi que seus olhos seguiram meus passos até a porta. Voltaria algum dia para vê-lo?
Estou meio perdida perplexa com os rumos que a vida tomara. Sempre imaginei tudo certinho, tudo na base do amor e da união. O que havia acontecido? Cada um cuidava de sua vida e eu, ali, voltando para a estaca zero. Percebo, então, que esse caminho, eu tenho que percorrê-lo sozinha. É a minha última noite no hotel, e o que sobrou para mim? Uma caravana de imagens percorrendo as estradas do passado, povoam o meu presente com o perfume daquilo que não volta mais. Na noite escura da solidão, choro baixinho e, em pensamento beijo aquele amigo querido, que talvez nunca mais lembrará da mulher que desabrochou aquecida pelo seu carinho e que por um breve tempo foi feliz. Viver de lembrança para mim é admitir a velhice, é mergulhar no declínio. Entrelaçadas, vivo de esperanças e lembranças. Vou catar os pedacinhos da minha vida, retornar as minhas origens e talvez, algum dia, alguém ainda me faça sorrir!
Corria o mês de novembro e já me encontrava em casa, inquieta e infeliz. Andava com o coração oprimido e os olhos desesperançados. Achei que era hora de tomar uma outra atitude. Aquela viagem para a Serra, não resultara em nada de positivo e aquela aventura tinha de ser esquecida. Possuída por uma febre louca em busca de alguma ação renovadora, comecei a vender tudo que tinha de supérfluo e, correndo, sem pensar muito, comprei passagem e fui embora para o Mato Grosso do Sul. Queria estar perto do filho, bem longe do palco dos últimos acontecimentos. Talvez lá encontrasse a paz que tanto buscava. O filho caçula resolveu ir junto, tentar a sorte por lá. Fico aliviada por ter companhia e proporcionar aos outros filhos certa tranqüilidade. Filhos que não entendiam aquelas mudanças buscas, aquele descompasso da velha mãe.
Ele era dotado de uma rara inteligência e um firme caráter. Naquele dia, sua chegada, obrigou-me a voltar do mundo nebuloso em que mergulhara, o mundo bolorento do ontem para vivenciar as coisas reais do agora. Vi a preocupação nos olhos do filho e o coração de mãe, igual a um cabrito assustado, logo se descompassou. Consigo manter a fisionomia calma, aparentemente indiferente, e pergunto:
--O que está acontecendo? Sinto que algo está te aborrecendo.
--Pois é, a causa é a senhora! Viver aqui, sozinha, curtindo saudades, isso me preocupa. Percebo a sua inquietação, até emagreceste. Por quê? Quer voltar para o sul? Pois vá! O calor intenso aqui, do verão que se aproxima, não lhe fará bem. O melhor é tentar novamente. Já se passaram tantos anos. Será bom rever as velhas coisas e as pessoas que ficaram para trás. Vai ser muito bom! Eu prometo que irei visitá-la, certo?
Um pouco surpresa com o rompante e aquela real preocupação, prometi ao filho pensar no assunto. A conversa gostosa e amena nos manteve despertos apesar do frio. Horas mais tarde, deitada confortavelmente no quentinho gostoso que a lã macia dos cobertores me proporcionava, pensei com coragem e firmeza o problema da minha volta. A escuridão do quarto, o farfalhar monótono dos galhos das árvores na dança do vento, agora mais brando, impunha lembranças e enchia de fantasmas o seu refúgio.
Amava meu marido, acreditava nessa paixão. Desculpava o seu comportamento avesso a lazeres, que preferia sempre ficar em casa ao invés de sair para dançar ou tomar um chope, junto com os amigos. Seu comportamento às vezes surpreendia e magoava. Em especial, quando se recusava a beijar-me tendo alguém por perto, fazer amor com a luz acesa, ou fazer críticas a maridos gentis das amigas, chamando-os de hipócritas. Mas eu nada via, tudo desculpava: tinha aprendido a conviver com aquele homem. Os filhos não foram bem aceitos no início, mas acabou dedicando-se, e sendo afinal, um bom pai. Com a partida dos filhos, depois de jovens, lembrava tudo o que havia acontecido e pensava ter chegado o momento de aproveitar um pouco a liberdade. Mas para meu espanto e amargura: vi-me rejeitada.
--Estamos velhos para passarmos as noites dançando ou andando como dois bobos em viagens cansativas. Agora que estamos sós, vamos ficar tranqüilos em casa, em liberdade, dizia-me ele. Fiquei triste e desiludida. E uma ponta de revolta irrompeu no meu peito. Não sabia porque sempre recordava aquela separação como algo não resolvido. Só o travesseiro foi testemunha do meu desencanto. Só o vento e a noite escura ouviram a revolta.
Antes de adormecer, lembrei de Mário, no hotel da Serra gaúcha e acreditei, naquela hora, ser a mulher que menos teve sorte no mundo. Foi quando o sol surgiu forte e brilhante, tomou conta da paisagem e banhou com sua luz todos os cantos e recantos daquela cidadezinha pobre. Correu quente e revelador, sobre casas, jardins e plantações, e se insinuou pelas portas duras das casas humildes. Foi travesso e começou a brincar no rosto de Elvira. No abandono do sono estava qual mocinha pudica, estendida preguiçosamente em sua cama.
Apesar da amargura do adormecer, acordei feliz, pois não separo o sonho da realidade. Pensava estar na rodoviária voltando para o homem amado. Abriu os olhos e contemplou o retrato do filho caçula e toda suavidade ao lembrá-lo. Como ele se adaptara depressa e fizera tantas amizades. Integrava-se ao social, aos problemas da terra, como se fora filho da região. Elvira pulou da cama, pois o filho Pedro viajaria para uma reunião numa cidade próxima e levava consigo a minha promessa de pensar no assunto, tomar uma atitude: voltaria ou não para o Sul.
Depois da partida, sento a sombra de um grande pé de manga que balança e lembro de meu eterno refúgio. Quando movida por meu sentimento de frustração e dor resolvera vir para bem longe, onde nem o eco das noticias me chegavam aos ouvidos. Decidira aventurar-me por essa terra estranha e a seu modo hospitaleira. Aqui fizera amizades. Mas a conversa que tive com o filho ressuscitara em mim os fantasmas, do primeiro casamento, da separação e do romance com Mário, cuja lembrança jamais deixara.
Havia um problema crucial: a demarcação das terras indígenas. Somava-se a isso o momento da política. Imperava na região um sistema paternalista exercido com mão de ferro pelo clã que há dezena de anos, dominava o lugar, passando de pai para filho, o poder. A cada nova eleição, um membro da família Salviery concorria e, naturalmente, ganhava. Além dessa oligarquia castradora, nesta região viviam os índios Ofaié, desalojados por pessoas que ostentavam o título de fazendeiros respeitáveis, não sendo nada mais do que usurpadores daquilo que não lhes pertencia.
Era uma vergonha gritante, essa luta para receber o que por direito inalienável pertencia e era de propriedades dos indígenas que clamavam por justiça. Pessoas idealistas e sonhadoras como meu filho caçula, generoso para com os desprotegidos me preocupava. Com a garra de adolescente, num impulso atávico que algum ancestral quixotesco, por ventura, lhe deixara por herança, o fazia abraçar aquela causa difícil, quiçá perdida. Embrenhar-se em pensamentos negativos era constante para Elvira. O ambiente era de expectativa entre os fazendeiros e criadores de gado do lugar, havia violência e tensão no ar. Antigamente, antes do descobrimento deste imenso país-continente, índios reinavam absolutos, não precisavam de demarcação, cada um sabia seus limites, seu pedaço, o seu território.
Durante milhares de anos aqui habitaram sem desmatar, sem prejudicar o meio ambiente e eram mais de dois milhões. Agora, o que temos são matas devastadas e animais em risco de extinção. Em somente 500 anos, o homem branco se encarregou de tudo destruir e realmente foi uma praga para os índios. Enxotados de seu chão, eram empurrados para terras áridas, terras improdutivas, sendo marginalizados em sua própria Pátria. Por anos essa luta se arrastava nos órgãos federais e nas lutas da comunidade. Mas havia uma leve esperança de solução para esse povo tão sofrido. Grandes proprietários de imensas fazendas, criadores de gado nelore, plantando grãos em quantidade astronômica, não entregariam todo esse potencial de terra, sem luta. Lá no Norte houve briga feia com mortes e até reféns os índios fizeram para pressionar o Governo a tomar uma atitude. A expectativa e a esperança estavam unidas, aguardando este ato de justiça.
Resolvi passar o domingo na propriedade de uns amigos, e Carlos, meu vizinho, ofereceu-me uma carona até o sítio. --Vamos sair bem cedo, D. Elvira, quero pegar a primeira viagem da balsa na travessia do rio Paraná, certo? --Claro, estarei pronta na hora combinada.
Passei um domingo calmo, envolvido pela paz das coisas simples e tranqüilas, fruto da rotina campestre. Fiz confidências a minha amiga, deixei extravasar aquilo que me angustiava: as saudades, o desejo de voltar! Aos olhos bondosos da amiga que me acompanhava, só havia uma solução: o retorno. Teria de refazer a caminhada com meus próprios passos, pisar o cadáver de meus sonhos. Tinha de limpar o caminho das recordações sentidas, enterrar toda a revolta, lavar a alma das impurezas dos ressentimentos com o orvalho de um novo amanhecer.
Abraço a amiga tão querida e já sentia saudade daquilo que ficava para trás. Na volta para casa, seu Carlos, passa pelo sítio para me pegar. Já entardecia e a noite nos pegava pelo caminho. A estrada de terra, solta e fofa, era formada por profundas valetas na sua margem. Pequenos riachos cortavam o seu leito, perdendo-se em meio à vegetação rasteira e sem brilho. De súbito, sentimos um baque e então percebemos o carro lançando-se pela ribanceira. Lá estávamos, seu Carlos e eu, perplexos, sem compreender o que acontecia. O motorista, agindo por reflexos, aliado a sua agilidade no volante, salvou-nos de um desastre maior. Um pouco atordoado com o choque, seu Carlos foi verificar a causa do ocorrido. Algo bem grave tinha acontecido: a barra da direção se partira e por pouco o acidente não teve conseqüências maiores. Felizmente seu Carlos sempre dirigia com muita cautela. Em pleno cerrado, numa estrada deserta, estávamos à mercê de um socorro que talvez não viesse. Incrédulos do milagre de estarmos vivos, ficamos na sua espera angustiante, decidindo o que fazer, o que seria mais prático. As horas passavam e meu amigo achou mais prudente procurar ajuda. A oficina mecânica ficava perto do rio, e isto equivalia dizer: ter que voltar uns quatro quilômetros a pé.
Segurando firme uma lanterna pequena, e literalmente apavorada, garanti ao meu bom amigo não haver problemas, eu esperaria e ele garantiu que a estrada era tranqüila. Rezando, fico na cabine, esperando, com o veículo perigosamente adernado. Meus olhos acostumaram-se a escuridão, fico mais calma e o medo vai se afastando.
No começo foi somente um ruído furtivo, que acreditei ser fruto da minha imaginação. Movi o foco da pequena lanterna, pesquisando as sombras e descobri ser nada. Novamente ouço sons de galhos secos sendo pisoteados e, no maior sobressalto, vislumbro surgir, saindo de arbustos raquíticos, dois vultos. Os faróis iluminam aquelas figuras fantasmagóricas que se dirigiam rapidamente para a camionete. Com as mãos trêmulas foi impossível acender novamente a lanterna que se apagara. O coração, como um animal aprisionado, queria desesperadamente saltar do peito. Quando a luz dos faróis novamente os pegou em cheio, pude ver perfeitamente os dois homens mal-encarados, que classifiquei de cruéis, vindo em minha direção.
O paredão negro de nuvens densas galopou, sinistras, levadas pelo vento forte que soprava. Em breves instantes, a lua apareceria, tornando mais real aquela cena fantástica. Os dois homens, peões de alguma fazenda próxima, sabedores de minha visita ao sítio do Coqueiral, cuidaram o meu retorno. Não contavam, entretanto, com o imprevisto do carro avariado, facilitando-lhes a tarefa. Mal conseguindo articular as palavras, pedi-lhes com voz chorosa, que não me machucassem, ao que um deles respondeu:
--Não dona, nóis só queremos dá um recado pro seu fío. O patrão manda dizê que ele não dá nada pros índios. As terras são dele, e o moço, seu fío, vai se metê numa baita encrenca, se continuar com essa história!
Assim como chegaram, espectros, surgindo no meio do matagal, também se diluíram na escuridão. A experiência foi traumatizante e muito tempo depois, já estando na segurança da casa, ainda sinto os joelhos tremerem e o coração apequenar-se de medo. Tento por todos os meios demover meu filho de uma participação muito ativa nesse meio indígena. Sua participação, seus largos horizontes, e o fato de não se ater a preconceitos, se por um lado me causava medo, por outro, causava admiração. Eu me alegrava pela visão fraterna que ele tinha do mundo, sem egoísmos, buscando o mais justo e mais humano. Ao mesmo tempo, temia pelo lado árido, solitário, sujeito a críticas, que sempre cai sobre os ombros daqueles que se doam e não são compreendidos. Temia até pela vida de meu filho. A juventude destemida é a glória em suas certezas e não duvidam jamais da vitória ou da conquista.
Depois de muito pensar e, num esforço para acreditar nas promessas de Fernando, meu filho, resolvi me preparar para a volta. Meu coração ansiava pelo Sul, minha velha casa, os amigos, esperanças, saudades. A alma inquieta vagava, percorrendo caminhos, reavivando lembranças escondidas bem no fundo, pondo em evidência meu desassossego. Nesse ir e vir, nas idas e nas vindas, sempre se perde algo valioso, irrecuperável. Além das coisas materiais, há todo um desgaste emocional que debilita nossas reservas morais.
Quando começaram os festejos carnavalescos, os tamborins, cuícas e pandeiros, numa cadência alegre e frenética que marcavam a noite de sábado, eu tomei uma decisão: voltar! As saudades impunham a volta, o retorno ao chão natal, às origens. Dentro de sua tristeza, sentia a necessidade de agarrar-se a algo mais consistente. Não ao passado sombrio que lhe amedrontava, mas a algo forte, vivo e compensador. Essa procura de caminhos, despertou meu espírito de luta, fazendo surgir a minha frente mil atitudes, uma miscelânea de idéias. Um conflito de emoções, e o Sul tornou-se, então, uma miragem confortadora, um oásis, um troféu.
Minha casa ficava quase no fim da última avenida e as músicas carnavalescas chegavam até ali, atenuadas pela distância. No silêncio gostoso da tarde, as plantas verde-brilhantes moviam-se macias ao sabor da brisa leve, suavizando, dessa forma, o calor que pairava sobre a cidade. Sentia junto à euforia da decisão tomada, um pouco de nostalgia. A quietude da casa desperta em mim vontade de remexer as coisas guardadas do passado, sinto o desejo de pôr em ordem o baú da minha vida. Um balanço das perdas e danos, achados e perdidos, uma análise fria dos sentimentos e reavaliação das conquistas. Se as tivera, o que fora e o que se tornaram. Queria me sentir organizada por dentro e por fora, para que a minha volta fosse serena, sem arrastar comigo meus fantasmas e meus mortos.
O ambiente estava um pouco abafado. O cheiro da cerveja e do cigarro, somado ao perfume das mulheres, misturava-se ao pó frio que os dançarinos nos seus volteios provocavam, o que deixava as narinas irritadas e sensíveis. Aquela variedade de odores gerava uma excitação próxima da euforia. Talvez, semelhante ao alcoólatra ao sentir o cheiro da bebida ou ao prisioneiro ao deparar-se com as portas abertas num aceno de liberdade. A música estava em seu sangue e a cadência dos instrumentos punha em seus pés, automaticamente, um ritmo, um sapatear macio e harmônico. Circunvagou pelo grande salão, algumas luzes acesas, várias mesas ocupadas ao longo da pista, cheio de rumores, de vozes, num crescendo, que mais tarde se transformaria em algo ensurdecedor. Vasculhou com olhar penetrante os recantos escuros, descobriu aqui e ali figuras conhecidas. Lentamente atravessou o salão e foi ocupar uma mesa bem afastada quase em diagonal ao coreto.
Displicente acendeu um cigarro, pediu uma bebida ao garçom e aguardou com tranqüilidade a chegada de alguém. A espera não foi longa. Ao levantar-se para receber a mulher que se aproximava, seus um metro e oitenta puseram em evidência o charme e a elegância natural daquele homem maduro, atlético e bem conservado. A mulher aceitou a cadeira que ele gentilmente lhe ofereceu. Ela, apesar de ser de estatura menor, ao lado dele formava um belo par. Os lábios sorriam, mas os olhos eram duros. Uma velha questão, um assunto já gasto voltou a prender a sus atenção e eles se enfrentaram discordando e argumentando.
Felipe levou-a para pista e enlaçados ao ritmo de um samba tradicional, carinhosamente pediu, para curtir a noite e deixar tudo prá depois. Mas Neuza, sua namorada, estava disposta a resolver de vez aquele assunto. Havia tempo que o motivo era sempre o mesmo. Felipe relutava em assumir aquela relação e sua parceira exigia uma atitude mais coerente, mais definida. Como poderia enfrentar os filhos, os compromissos, a vida, se o futuro lhe era incerto? Felipe era o tipo do companheiro independente, sumia por semanas inteiras, não deixava recados, nem um sinal. Era muito difícil viver com uma pessoa desse tipo. Já faziam quatro anos e o futuro lhe era incógnito.
Andava com problemas de saúde, mas não se importava, não se resolvia e trazia a todos que o rodeavam em suspense. Mas naquela noite seria diferente. Tomaria a decisão que ela esperava. Já transcorrera um tempo enorme do dia em que Elvira se fora para o Mato Grosso e nunca mais voltara. Soube pelos filhos que ela estava muito longe, lá pelo Norte ou Centro Oeste do Brasil, possivelmente já casara, pois era uma mulher cheia de encantos. Hoje acertaria sua vida com Neuza e poria fim àquelas idas e vindas, como um adolescente que não sabe o que quer.
O salão estava cheio, os amigos se cumprimentavam. A música era vibrante, cadenciada e em seus braços estava aquela linda mulher, dançarina exímia, dona de olhos doces, enormes, boca simplesmente sensual e convidativa. --Que mais desejava? Ela lhe provara ser a pessoa que o amava, nada escondia de seu passado e o mais importante: aceitava-o como ele era, egoísta e possessivo.
Segurando firme, bem apertado àquela cintura de manequim, tentava argumentar: --Eu te prometo que hoje resolveremos tudo, mas agora vamos aproveitar esse encontro gostoso. Mas ela zangada falava: --Não é a primeira vez que prometes resolver nossa situação e fica tudo na mesma. Bem sabes que tive que pagar uma babá para ficar com as crianças e poder vir nesse baile e vim somente para resolver esse nosso caso. Felipe aperto-lhe o corpo esguio e colou seu rosto na face macia e perfumada de Neuza, dizendo-lhe baixinho, palavras de carinho, coisas que toda mulher gosta de ouvir.
A noite chegara ao fim. Nas ruas molhadas pelo sereno, os raros bailarinos que não dispunham de carro caminhavam de mãos dadas, beijando-se nos vãos escuros entre os postes de luz. Enfeitavam a paisagem com suas silhuetas negras, tendo ao fundo o avermelhado do horizonte. Mais tarde, deitados na velha cama-de-campanha que Felipe conservara para suas excursões, saciados e felizes faziam planos para o futuro. A nova realidade tomava vulto, mas no fundo de sua mente, certas lembranças produziam laivos de saudade. Nascia no seu âmago e como erva daninha, crescia rápida e tentava absorvê-lo. Agradecia a escuridão do quarto que encobria suas feições e Neuza não veria a sombra que desceu em seu olhos e também a dureza que tornou sua boca numa linha fortemente cerrada.
Havia coisas muito fortes naquele baú de lembranças. E elas chegaram como um vento doido que varre as folhas secas nas avenidas desertas. Também elas, as lembranças, eram doidas rodopiando de cá e lá, entrechocando-se, ásperas, algumas, outras deslizando suaves, rolando, rolando, ao sabor da ventania. Ele sentia que a esperança não estava morta e que essa decisão sobre o seu caso amoroso nada mais era do que uma esperança. O primeiro amor não morre, simplesmente adormece, disse o poeta. E o seu amor por Elvira fora sofrido, cheio de mágoas, muitas cobranças, muitas dúvidas, muitos desencontros, porém, fora amor!
Ele tinha consciência que algo precioso fora perdido ao longo desses anos, de forma irrecuperável. Levantou-se com extremo cuidado para não acordar a mulher que dormia a seu lado e procurou no bolso da camisa os cigarros, um feio vício que tinha adquirido não fazia tempo. O olhar perdido, não via nada além daquilo que o cercava remoendo suas incertezas. Tinha a mente voltada para uma pergunta cruel: --Fora amado pelo que era ou Elvira o queria somente para pai de seus filhos? Sempre surgia essa pergunta em seu íntimo, mas tinha certeza que nunca fora enganado. No momento o assunto não tinha solução. Mas aquele pesadelo tinha de ter fim.
O remorso de Felipe é de ter usado aquela mulher tão amada num período em que sua existência mergulhava num desânimo, no cansaço do dia-a-dia. Simplesmente buscava-a para satisfazer-se e logo após, com seus desejos saciados, virava-lhe as costas, e dormia envolto em seu egoísmo nojento. Quando se tornara insuportável para Elvira conviver com aquilo, suas reclamações foram respondidas com acusações mesquinhas e injustas. As lágrimas sentidas de Elvira molharam o chão de sua felicidade, mas nada sensibilizava aquele coração endurecido. Agora, olhando a nova companheira, pensou estar chegando o momento de pagar. Teria de saldar a dívida com sua consciência, assumindo esse compromisso com Neuza.
Prometeu a si mesmo embarcar para Alvorada, cidade vizinha onde tinha propriedade. Iria assumir o seu papel: dedicar-se a essa mulher que o amava e cuidar de seus filhos, que a partir de agora, seriam também seus. Horas mais tarde, com o firme propósito de pôr em prática as promessas da noite, tomou banho, barbeou-se e beijando carinhosamente os lábios carnudos de Neuza pediu-lhe que juntasse as sacolas e malas, enquanto ele iria reservar as passagens e tranqüilo encaminhou-se para a rodoviária.
Aquela noite estava muito fria, com ventos fortes, uivantes, produzindo um terror opressivo. As árvores dobravam-se lamentosas, protestando contra o castigo. A poeira que a ventania levantava, envolvendo casas, pessoas, roupas e a paisagem, deixava um tom avermelhado, triste e sujo, encardido até os pensamentos dos habitantes da pequena cidade. Pelas frinchas de portas e janelas a chuva gelada que começara a cair, mandava para dentro das casas seu recado úmido. Abrigados em seus lares, muitos lamentavam a falta do supérfluo, esquecendo que a chuva e o frio maltratavam os desabrigados, os órfãos da sorte.
A madrugada se delineava no horizonte quando deixei aquela cidade que tão bem me acolheu. Meu ônibus para o Sul saiu às cinco horas em ponto. Dois longos dias viajando e agora seus olhos cansados contemplaram as paisagens gaúchas. Como seiva nova sentia o corpo se revigorando, um sorriso feliz entreabre seus lábios e suas narinas se dilatam com os cheiros da terra querida. Foi ali, naquelas plagas que ouviram o seu choro e as coxilhas que guardavam o seu canto de revolta, tendo o céu por testemunha que ela havia jurado não mais voltar!
Alma em suspenso aguarda os imprevistos que abalam minha frágil segurança. Ia, finalmente, saciar aquela saudade do chão querido, da brisa perfumada das serras, do vento áspero varrendo o pampa, o aroma acre-doce dos vinhais e da maresia do Atlântico. Aquela terra amiga, onde estava enterrada uma parte da sua vida, de seus sonhos e também de suas desilusões. Mais alguns quilômetros e já avistaria sua cidadezinha. Poderia, então, apreciar de longe os escombros e passar de leve o dedo sobre as feridas cicatrizadas. E foi na ânsia de chegar, de ter a surpresa agradável de ver a alegria nos olhos de alguém, entre risos e malas, que eu o vi: O homem que tanto significou para mim, voltando de um passado que julgava morto, lá estava, e seus olhos sobre mim pousavam.
Sentiu mais do que viu quando aqueles braços se ergueram para saudá-la e, naquele olhar inconfundível, se reportou a garota. Não pensou. O mundo parou. Não havia distância e eu voei para a fortaleza daquele peito. E eu me perdi no carinho daqueles braços que me apertavam com paixão. Felipe, numa mistura louca de sentimentos, incrédulo, contemplou o passado que voltava num momento decisivo de sua vida. O coração doeu de emoção, os olhos absorviam a figura amada e o mundo que o rodeava precipitou-se no nada. Viu somente a saudade e o amor. E seus braços já não estão mais vazios e em seu peito não havia mais incertezas. A cabeça de Elvira repousava em seu peito e docemente possuía aqueles lábios que sempre foram seus.
O que aconteceu com todo aquele entusiasmo aquela paixão? O ser humano é um mistério e quanto mais nos aprofundamos, mais confusos ficamos. Sempre haverá uma pergunta sem resposta, sentimento de angústia e a incerteza do desconhecido. Após um ano e meio de nosso reencontro, naquela rodoviária, depois que se acalmaram os desejos e a saudade de estarmos juntos, quando a calmaria envolveu nossos anseios e docemente entramos no cotidiano, após longas e intermináveis conversas, chegamos à encruzilhada, e dai?
Nossos acertos, queixas e reclamações foram longos e doloridos. Tristemente constatamos que tudo aquilo sempre foi visto e analisado sob outro prisma, outro ângulo. Os meus silêncios magoados foram vistos como birra, ciúme, e as reclamações eram tidas como pretexto para a afastá-lo de casa, como falta de amor. De toda essa matemática amorosa, onde mais se subtraiu do que somou, houve mais divisão do que multiplicação e o resultado foi desencanto, tristeza e afastamento.
--Onde ficou? Em que volta do caminho se perdeu a alegria do reencontro naquela rodoviária, quando carente e cheia de amor me joguei nos braços de Felipe? Onde ficou aquela mulher revivida no ardor da paixão que ficou linda, bonita, porque o amor é lindo. E desse homem, o que sobrou? Será que os acontecimentos criaram uma cápsula que nos isolou um do outro, tornando difícil o nosso relacionamento? O que teria de acontecer para romper com esse estado de coisa?
O espaço de tempo que nos separou foi longo demais e após várias tentativas acabamos num caminho sem volta. Nossa vida em comum se tornou impossível, não nos reconhecíamos mais. Não nos identificávamos, havia incompreensão. Pensávamos como dois tolos: que os contra-tempos seriam como trampolins, projetando-nos para um infinito risonho. Seria um desafio provarmos a nós mesmos como era grande e belo o nosso amor. Dizem os entendidos que a felicidade, desconhecida para alguns, existe dentro de nós. Como explicar que tendo tudo, certas pessoas, sente-se como num limbo, apáticos, sem rumo e sem direção? Um certo dia, simplesmente, sem estardalhaço algum, sem grandes explicações, foi para sua casa, levando comigo esse caso mal resolvido. Sentindo falta de algo, não sabia bem o quê. Definitivamente estava só.
Estamos no mês de março e bandos alegres de crianças desfilam pelas ruas movimentadas em direção a escola. O olhar brilhante antecipa a festa dos reencontros, a segurança gostosa do velho prédio escolar cria a expectativa excitante de novos amigos, de novos conhecimentos. Cercada destes momentos festivos do início das aulas, e envolvida pelo espírito que impregnava as mentes juvenis, revi a velha casa empoeirada, velha e feia, mas digna em seu abandono. Seus gramados, seus jardins, árvores sem poda, tudo me falava de solidão. E numa linguagem muda, mas eloqüente ela me dizia: --viu? Eu estou aqui aguardando tua volta!
Voltar e comover-se, é como tocar naqueles os antigos que guardam segredos e lindas histórias. É deitar-se na velha cama onde o amor de um homem foi glória e holocausto, foi mistura de dor e vagido de vidas que eu trouxe ao mundo, aquele ninho venerável. Aquela velha cama que sacudida pelo riso fácil de seres felizes, foi testemunha de lágrimas e gritos silenciosos de angústias reprimidas.
Sentia-se no ar o cheiro de guardado, dando a idéia e dimensão de passado. Vim com o espírito de olhar em frente, novos personagens, novos acontecimentos. Aparentemente não tenho medo. Fiz-me vaidosa, diferente. E estou alegre, entusiasta, com mil projetos, numa dinâmica que, se observada atentamente, verifico ser falsa e exagerada. Ainda assim, consegui transformar minha volta na melhor performance da minha vida.
Depois de desmontar a casa, numa limpeza furiosa, vasculhar os cantos, perseguir insetos, desalojar pobres aranhas, ataquei as gavetas e os armários. Ponho tudo em ordem, selecionando papéis de cartas e contas, livrando-me da imensa papelada que conviviam tranqüilamente com baratas apavoradas sem rumo. Como guardamos papéis que foram importantes ontem, mas hoje perderam o valor! Será que o volume desse tipo de guardado é que nos confere importância, quanto mais melhor? Fui lendo, avaliando, separando, jogando fora e lá estavam elas as cartas de Mário!
Só o fato de tocá-las já era emocionante. Peguei-as, namorei a suas formas, cor e textura, e decidi abri-las como a caixa de Pandora. Já tinha em parte esquecido seu conteúdo. Foi uma surpresa. Tanta ternura, tanta carência naquele pedido: --Responda, por favor! Como pude brincar com o sentimento desse homem? Não! Eu não brinquei. Simplesmente tive medo. Medo de mim, do meu coração machucado, sofrendo aquela dor de se sentir só. Mas, esse coração insensato já se alvoroça, já bate num ritmo diferente.
Eu não entendo. Sofri pela tentativa frustrada com Felipe e meu coração maluco ainda suspira a lembrança desse homem! Com interesse e uma pontinha de melancolia, reli todas as cartas. Como um filme de longa-metragem que se assiste em episódios, lembro de tudo: a viagem, o assalto, o hospital, sua mãe, seu amor e minha fuga.
Uma idéia bonita começa a se delinear em minha mente. Iria visitá-lo. Não! Telefonaria, era mais prático. Farei isso amanhã. Vou deixar essa idéia amadurecer na paz de uma noite bem dormida. Pela manhã procuro uma carta que havia lido o número de seu telefone e ligo. Quem atende é um secretário.
--Quem deseja falar com o Dr. Mário?
--Diga a ele que é uma amiga de Vale Verde, Elvira!
--Um momento, por favor.
Fico na expectativa, levemente arrependida por essa ousadia que, aliás, não combinava com o meu modo de ser. Mas eu mudara tanto que nada mais me surpreendia.
--Alô? É mesmo minha querida amiga Elvira?
--Mário, meu amigo, como estás? É ela mesma!
--Realmente me apanhaste de surpresa! Acho que é isso que a torna especial.
--Obrigado. Mas queria saber como estás? A tua vida, a tua saúde.
--Eu estou bem. Estive ausente um longo tempo mas estou curioso para saber o porquê do teu silêncio. Estou feliz com a tua ligação, mas por telefone não dá para falar. Quem sabe o hotelzinho lá da serra? Eu tenho muita coisa para te contar.
Fiquei muda, pensando na proposta de Mário. Senti-me lisonjeada com o convite, mas eu tinha chegado há pouco e viajar novamente, não sei... Do outro lado da linha, Mário reclamava:
--Acho que mereço. É uma forma gentil de me pedir desculpas pelo modo cruel como me abandonou, certo?
--Está bem, irei! No sábado estou chegando.
--Um abraço, depois nos falaremos com mais tranqüilidade. És especial para mim. Um beijo!
A paisagem, o hotel, tudo permanecia imutável, sólido como coisas eternas. Só eu tinha mudado. Ali era outra mulher que chegou e pediu um quarto, arrumou-se e esperou. Naquele momento sou uma mulher que sabe o que quer, e está disposta a pegar o que de melhor a vida pode oferecer. Estou decidida. Vou ser feliz, mereço ser feliz. O passado era uma duplicata vencida que foi cobrada pela vida e eu gastaria até o último minuto, vivendo o doce embalo que o amor pode proporcionar.
Ele chegou com o entardecer. Como um sol após a chuvarada de outono, como a brisa fresca em noite de verão. Trazia as mãos cheias de flores e a primavera no olhar. Um buquê de flores, e na boca generosa, um sorriso quente e amigo. O coração cansado, logo se aqueceu naquela chama terna e insensível, olhos cheios de promessas. Um reencontro lindo e simples. Duas pessoas comuns, nem velhos nem moços, nem belos nem feios, que carinhosamente se deram as mãos. Num acordo sem palavras resolveram caminhar juntos, um dia, um mês, talvez dez anos, não sabiam, mas estavam felizes. Em tardes amenas contei minha história e o porquê de tê-lo abandonado lá no hospital. Ele insistiu em saber os motivos e eles agora pareciam tolos e sem consistência.
Ele tem uma família bem estruturada, de origem italiana, detalhe importantíssimo. O italiano comprou nossas terras, bebeu nossos riachos, se aqueceu nesse sol generoso, mas nunca aceitou integralmente nosso povo. Para ele somos negros, preguiçosos. Eu não suportaria jamais um vislumbre no olhar aquelas pessoas, que para Mario eram tão queridas: sua mãe e seus filhos.
Sou morena e tenho orgulho de meu meio-sangue indígena e português. Dessa salada étnica herdei esse tom de pele e também a vantagem das poucas rugas. Atada a preconceitos e a medos de uma decisão errada, não querendo constrangê-lo com minha visão pequena das coisas, fugi! Havia melancolia em seus olhos quando contava como fora sua tomada de consciência, as lembranças voltando. A mágoa da minha ausência plantou em sua vida, o vazio e a incerteza.
A mãe o havia levado para recuperar-se em sua casa, lá na encosta do cerro. Após uns oito meses de haver se recuperado e partido, lá voltou para enterrá-la. Lá onde as casuarinas fazem a melodia suave nos ramos que se tocam na brisa da tarde, ao som dos sinos que espalham no vale a nostalgia de esperanças perdidas, lá ele enterrou também sua tristeza e a dor de sua alma.
Ainda não tinha condições de trabalhar, então o filho do meio, Moacir, pensou que seria bom ocupá-lo em algo gratificante: o almoxarife da firma. E foi lá que ele recebeu o meu telefonema. Ficou feliz e dividiu esse momento tão importante com o filho.
Ficamos lá o fim-de-semana e resolvi convidá-los para conhecer meus filhos e minha cidade. Os fatos só acontecem como planejamos nas novelas e nos livros. A realidade sempre nos ultrapassa nos limites do razoável e aí então começam as confusões. Sem deferência alguma invadiram nossa privacidade, meus amigos, parentes, filhos, deixando nos expostos. Ele, simpático, a todos respondia, explicava. Educado e insatisfeito. Enfim, aprovado!
Resolvemos comemorar com um churrasco o acordo, a união. Nem bem iniciamos nossa vida a dois e já me vi cometendo os mesmos erros. Como no passado, voltei ao servilismo e dedicação para comprar a estabilidade no contrato matrimonial. E não percebi que doação de vida, abnegação, não iria comprar uma velhice com afeto. Minha anterior separação não serviu para alertar-me de um futuro fracasso. Um dos itens sempre reclamado era minha anulação como mulher para o bem do outro. Mas o carinho de Mário e sua infinita paciência, faziam tocar o barco das nossas vidas seguia em mar calmo e com poucas intempéries. Passaram-se dias calmos e muita cumplicidade entre nós.
Era meio-dia, o sol abrasador que queimava e ninguém se expunha ao calor escaldante, quando recebi um telefonema da filha. Essa hora morna, em que os sentidos estão lassos, custei a percebeu o tom de preocupação na voz que me falava.
--Simone, minha filha, calma! Conta-me o que está havendo?
--Mamãe, Liz anda estranha, não quer mais estudar. Promete fugir se nós a forçarmos. A senhora sabe que depois da minha separação, ela tornou-se revoltada, me culpando por tudo que aconteceu. Estou muito preocupada, não sei o que fazer.
Pensei rapidamente na minha vidinha calma e estruturada. Depois pensei que alguém pedia socorro e esse alguém era minha filha.
--Querida, quem sabe vens passar o próximo domingo aqui conosco, então falaremos com mais tranqüilidade? Não chore, minha querida, isso que Liz está fazendo nada mais é que rebeldia e faz parte dessa fase difícil. Acho que daremos um jeito, certo?
Domingo, entre abraços e beijos, exclamações de alegria e contentamento, toda a família se reuniu e Mário foi querido, assumindo o churrasco, a batata na brasa, coisa que todos nós gostamos. Liz era linda, como um pêssego maduro, cabelos dourados, longos e lisos caindo-lhe pelas costas retas, longas pernas, corpo ainda em fase de acabamento, com promessa de uma beleza escultural. Seus olhos refletem toda a natureza apaixonada e autêntica, num castanho-profundo franjado de cílios espessos e negros. Chamava atenção o contraste entre o cabelo e os olhos, que lhe davam um ar de mistério e seriedade.
Estava triste, calada, meio arredia. Isolou-se no gramado sombreado pelas acácias e madressilvas perfumadas. Lá ouvi as suas queixas e algumas confidências. Naturalmente, estava apaixonada e esse era o motivo real de todo o drama. Eram, primeiro amigos, colegas de colégio e a paixão borbulhou como uma coca-cola bem gelada. E lá estava ele, adolescente, criançola, mas já se tendo por homem muito maduro e sábio.
--Querida, acho que ninguém te proibirá nada se esperares concluir os estudos. Tens que admitir que Valter, o teu amor, é ainda muito criança, ele tem apenas dezessete anos. Vamos fazer um trato? Se até o ano que vem, continuar essa paixão, tu já com dezesseis anos e ele com dezoito, eu te prometo solenemente batalhar para que se realize esse teu sonho, certo?
Não havia conformidade nem aquiescência. Seu olhar era sombrio e ela transpirava mágoa. Tentei argumentar, mas sem resultado. Ela tinha pressa. Fui procurar minha filha e pedi para deixar Liz ficar comigo alguns dias. E assim ela começou a fazer parte do meu cotidiano. Passeava pela cidadezinha, lia um pouco, dormia bastante e o resto do tempo ficava pendurada no telefone. Recusava-se a voltar para casa da mãe. Estávamos num impasse. Nós, aflitos, não sabíamos lidar com esse tipo de rebeldia. Com meus filhos, essa atitude nos era desconhecida e preocupava-me pensar em drogas, fugas ou coisa pior.
Após muitos telefonemas, algumas visitas da minha filha, tudo sem êxito, pensou-se, talvez, em prolongar o tempo da permanência comigo. Realmente foi uma mudança radical. Tive de reprogramar minhas atividades, mas a família era sagrada e os fins justificavam os meios.
A grande Porto Alegre era uma explosão de cores e de sons. A massa compacta de edifícios emprestava um ar soberano àquela velha cidade, neste fim de novembro. O Guaíba, como uma lâmina de prata, orgulhosamente se mostrava, preguiçoso e imperturbável aos que o admiravam. O velho rio, agora, poluído, ainda era soberbo e importante na economia local. Nos terraços e elevados, rudes hastes de cimento se lançavam sobre ele, unindo suas diversas ilhas e a outra margem, num abraço comunitário. Em tempos passados era usada uma balsa e barcos para a travessia de pessoas e veículos. O sonho era a ponte. O progresso tornou necessária fazê-la, havia o movimento rodoviário e todas as carências de uma próspera metrópole. Essa cidade é linda, única, pioneira, mas também tinha o lado real e triste.
A subida é íngreme como que se agarrando a alguma coisa que estivesse no caminho. Árvores empilhadas com caules finos e cumpridos, espalhadas. Gente pobre, desconfiada. Crianças de carinhas sujas, olhinhos brilhantes. Lá no alto, dominando a paisagem, está a Cruz. Quem mora no Morro da Cruz, olha a cidade a seus pés. Linda, vista de longe. Porque de perto, o crime, a dor, a droga e a fome que enfeitam suas ruas, estão camuflados. Atrás das portas pintadas de cores alegres, ficam escondidos os becos que a noite estrelada confunde. O medo é enfrentado com desprezo pela lei, pelo riso cruel da miséria. Nas favelas, com um histórico de mortes e crueldades às vezes justiceiras, eles têm suas próprias leis, suas regras de lealdade. Eles são os seus próprios juízes.
Num bar, mesas feias, limpeza duvidosa. Lugar escuro, pouca ventilação, moscas zunindo e o rádio gritando um rap atual. Três homens falam em voz baixa. Eram jovens, dois brancos e um negro. Sentiu-se a animosidade no ar e o cheiro da revolta misturava-se a outros odores. O gesto esquivo, o olho que disfarça e vai noutra direção. Os ânimos estavam alterados e a mínima provocação faria aquele barril de pólvora de emoções contraditórias detonar. Um mínimo de intenções não muito sensatas faria ir tudo pelos ares.
Olhos penetrantes, gestos ousados de quem não tem nada a perder. Roupa da moda, calça jeans, camiseta regata, tênis de marca e um boné caído sobre os olhos. Aquele que parecia ser o mais velho levantou-se. Atlético, mais ou menos um metro e oitenta de altura, como passadas felinas, foi até o balcão. Após ter trocado meia dúzia de palavras com aquele que parecia ser o dono, fez um sinal para os companheiros e se dirigiram todos para a porta dos fundos do boteco. O dono do bar, sujeito mal-encarado, disfarçadamente observava os rapazes. Para sua sobrevivência dependia de sua capacidade de captar todos os pormenores, qualquer detalhe poderia salvar sua vida.
Lá havia mesas e cadeiras. Sentaram-se, juntaram as cabeças e discutiram. Passaram-se longos minutos antes de chegarem a um acordo. O negro brincou com o copo. Espantou as moscas que pousava sobre os farelos da mesa imunda e, dando uma guinada com a cadeira, levantou-se e saiu. Passaram-se alguns minutos e logo os outros o seguiram. Passaram pelo bar e partiram cada um numa direção. Em silêncio, começaram a descida do morro, espiando a cidade que se derramava a seus pés.
O assalto fora combinado para as zero hora dessa noite. O local previamente escolhido, cada um sabia o que fazer e como agir. Viviam disso. Aliás, sobreviviam com aquilo. A vida dura, a miséria lhes ensinara a tomar pela força aquilo que lhes haviam negado pelas circunstâncias do nascimento. Combinaram que haveria o acerto, somente após o trabalho. Dispersariam-se indo para o interior. Tomariam rumos diferentes, até sentar a poeira. Sempre dera certo. Passado um tempo voltavam e dividiam a muamba. E recomeçavam.
Daniel tinha a alcunha de O Grande, devido a sua estatura. Após perambular por locais obscuros, escondendo-se, tentando ser discreto, estava displicente nas proximidades de um posto de gasolina. Se a sua atitude era de tédio, seus olhos eram argutos, investigando constantemente às adjacências. Analisava tudo e todos que passavam no seu campo de visão. Um monza de cor preta estacionou no posto para verificar o óleo e completar o tanque. Seu ocupante, um moço de pouca estatura, mas com ar de decidido, loiro e gordinho, saltou agilmente do carro e foi até a lanchonete tomar um refrigerante. Daniel analisou-o, mediu as conseqüências e resolveu arriscar.
--Moço, tem uma carona aí?
Paulo Vernez, diretor de marketing de uma grande firma, de propriedade de seu pai, Mário Thomas Vernez, estava passando por Porto Alegre, vindo de São Paulo. Pretendia visitar rapidamente o seu velho pai naquela cidade e depois, ir à Bento Gonçalves participar de uma reunião onde seriam decididos vários assuntos importantes. Por ter descoberto e denunciado o desvio de dinheiro e de material dentro da empresa, seu cargo estava em jogo. Sua imagem na firma estava sendo questionada, mesmo sendo o filho caçula do presidente majoritário.
Queria fazer uma visitinha rápida ao pai. Desde que ele havia reencontrado aquela mulher que tanto admirava e havia resolvido seguir a vida junto dela, não mais o vira. Preocupado com seus problemas, o veterano viajante dessas estradas solitárias e perigosas, há muito riscava o Brasil de Norte a Sul. Naquela noite, entretanto, quebrou a regra número um de todo o motorista: nunca dar carona para estranhos!
Estava consciente dos riscos. Mas, o que motivou sua concordância em levar o moço? Seria simplesmente um ato impulsivo e inofensivo, ou algo mais profundo e inexplicável? O vento amenizava o calor sufocante do asfalto e o silêncio da estrada fazia Daniel pensar na noite anterior em que ocorrera o assalto. A casa era um luxo, gente da alta esfera social e econômica. Ele, acostumado a pequenos furtos, estava apreensivo. Havia participado de um golpe que envolveu vários companheiros. Envolvia perigo e a casa era mesmo uma fortaleza. O mais sensato foi mesmo sair da capital o mais rápido possível. Agora, ele deixara a precaução de lado, e um tanto apavorado, resolveu enfrentar o dono do Monza.
O carro corria veloz e Daniel olhando a paisagem parecia tranqüilo. E foi natural a aproximação dos dois. Uma dupla corrente de contatos verbais amenizou a viagem. Pequenas e leves confidências, um agradável bate-papo. Daniel confessou que devido a problemas com a família, ia tentar a sorte em outras terras. Paulo simpatizou com o cara e levou-o até Bento Gonçalves. Estando próximo, fez-lhe convite para conhecer Planalto Grande e conhecer também seu pai.
Foi uma dessas coisas inexplicáveis, um impulso generoso de ajudar, espontâneo. Uma confidência, um aperto de mão, o jeito atrevido de erguer o queixo e Paulo, o precavido, o cauteloso, lá estava ele pondo a mão no fogo pelo desconhecido Daniel. Justiça seja feita. O delinqüente de hoje já foi ontem um rapaz honesto, teve sonhos e aspirações como qualquer jovem brasileiro. O sistema capitalista, cruel, se encarregou de mostrar sua face mais perversa. Quando se quebra uma perna, como foi o seu caso, a saúde pública não se comove com seqüelas e possíveis defeitos: não há verbas! Quando a irmãzinha foi violentada, os policiais riram de seu depoimento ingênuo e a mãe não teve apoio judicial em face da família rica que durante anos lhe sugou o suor. Devia ter denunciado o patrão e o filho deste, receptador de drogas.
Não, ele não teve chance. Apesar de seus bons propósitos, ele ainda tem sede de justiça. Então se tornou aquilo que todos esperavam dele: um marginal, bandido, ladrão. Era um desajustado integrante das gangues de rua, puxava de quando em vez, um fuminho e vivia solto na malandragem. Será que o destino dele era esse ou tudo aquilo era desculpa para as injustiças que sofreu? Descambou para o crime ao sentir o fascínio do dinheiro fácil e compromisso nenhum. Não, ele não era mau. A vida é que lhe conferia esse título de marginal e ele estava agindo direitinho para merecer. Apesar dos sentimentos embotados e o viver sem lei e sem rumo, bem no fundo, restava-lhe ainda uma pequena parcela de humanidade. Talvez se houvesse alguém disposto a abraçá-lo, também haveria resgate para esse rapaz amargurado e perdido.
A chegada do filho de Mário em nossa casa já era um acontecimento. A chegada do novo amigo, entretanto, causou uma pequena confusão. Pai e filho felizes, e nós mulheres borboleteando ao redor deles, alegres e bem-humoradas. No quarto de hóspedes ficava a neta Liz, no sótão havia um quarto que era reservado para as emergências. Lá ficou o filho de Mário. Numa pequena edícula, na parte de trás da propriedade, onde funcionava a lavanderia e churrasqueira, tinha uma peça vagas, e foi lá que instalamos o Daniel.
Houve pequenos passeios pela cidadezinha. Longos papos na sombra acolhedora das árvores, os cinamomos que soltavam suas folhinhas amarelas no verde gramado convidativo. Houve também muitos olhares entre Liz e Daniel, furtivos, medrosos, cheios de ânsias e sabor de promessas. Com a preocupação instalada em meu coração, eu vi aquilo que era furtivo e distante transformar-se em algo mais palpável. O que estava longe se aproximava comprometedoramente. Paulo confessou nada saber sobre o novo amigo. Tinha somente uma certeza: era honesto, porém, com pouca sorte. Mais tranqüila, deixei as coisas acontecerem, preparando-me para intervir somente na hora certa. Em dias calmos, a família na doce intimidade, encontrava-se reunida. Paulo partiu após alguns dias, mas Daniel pediu a Mário e a mim para ficar mais algum tempo na esperança de conseguir um emprego. Ele já havia nos conquistado.
Certo dia, na hora do lanche, verifiquei que estava faltando massa-folhada para os pastéis de queijo e petiscos que Mário tanto apreciava. Aceitei o oferecimento de Daniel para buscar o produto na padaria, no centro da cidade. Quando ele já estava no portão Liz saiu da garagem com sua moto, presente do pai, e mandou Daniel subir na garupa. O ronco do potente motor ainda ressoava no ar, o relógio ainda não andara meia hora e o café ainda não estava totalmente coado quando o corpo lindo e dilacerado de Liz me foi entregue.
Falar de dor, falar qualquer coisa, nessa hora, não tem sentido. Só quero ficar quieta, estarrecida, suspensa sobre abismos negros, como garças dilacerantes, rasgando nosso coração. Não queria ver aqueles cabelos de seda, cor dourada, sem vida, cheio de fragmentos estranhos; sangue e ossos que a atadura não conseguia esconder. Minha neta querida, minha menina estava morta! Um acidente estúpido interrompe toda aquela promessa de vida. Juventude idealista, acabava em nada! O rosto não existia mais, envolto em gaze, piedosamente coberto.
Como consegui me manter lúcida em meio àquele pavoroso episódio, eu não sei. Tempos depois eu soube como tudo aconteceu. Uma carreta estacionada. No exato momento em que manobrava, Liz dobrou a esquina numa curva muito aberta, entrando diretamente para baixo do caminhão. Devido à altura da cabine e também por ser um veículo muito comprido, alto e pesado, o motorista chegou a vê-la passar na frente, porém não imaginou que ela após vencer o primeiro eixo da carreta, rodaria, indo direto para o vão do segundo eixo do truque. Mesmo com as rotas esmagando o crânio da menina e a gritaria do pessoal na calçada que deixou o motorista ainda mais nervoso, ele não atinou para o que realmente acontecia. A freada brusca terminou de matá-la. Ela morreu na hora e Daniel que ia à garupa ficou muito ferido. Morreu três dias depois no hospital da cidade.
Epílogo
Lançada no vértice da dor mergulhei num mundo amorfo, aonde o choro e as lamentações não chegavam a desequilibrar a proteção que a minha mente havia construído. Fiquei muitos dias em estado letárgico. Levantava me por minutos. Mário levava-me para o sol gostoso de maio. Beliscava alguns alimentos e quando alguém tentava falar sobre o fatídico acontecimento, simplesmente virava o rosto para que não percebessem o desespero de meus olhos e a luta da minha consciência para romper o bloqueio angustiante que me consumia lentamente.
Aquela mulher descarnada, olhar doloroso que me espreita intensamente, toda ela é a imagem do sofrimento e aquilo me era vagamente familiar. E foi a sua voz que, como um raio, abriu caminho, envolveu o meu coração, arrancando-me das minhas entranhas e trazendo à tona aquele potencial de dor. A voz amada da filha, sofrida, estilhaçou as minhas defesas. E como um dique que rompe ao furor das águas, nossas lágrimas se misturaram e lavaram nossas dores, embalaram nossa tristeza. Emergimos. Embalo-a em meus braços, relembrando a breve vida de Liz. Fomos ao cemitério levar flores. Flores para aquela flor tão prematuramente retirada de nosso convívio. Os filhos não são vossos filhos, alguém já escreveu essa grande verdade.
Deus já havia me presenteado com um bom par de anos e, sendo assim, quando as metástases começaram sua invasão macabra, eu me conformei. Para falar a verdade, somente em parte. Tentava aceitar aquilo que a vida me oferecia, sendo grata por tudo o que ela havia me dado. Já muito fraca para as caminhadas, ficava deitada perto da janela, olhando o pé de ipê amarelo, com seus galhos floridos, oscilando levemente sob o efeito da brisa da tarde. Sentia saudade dos filhos distantes e ao mesmo tempo queria poupá-los do espetáculo do meu corpo em franca deteriorização.
Lembrava sempre de Felipe, o pai de meus filhos. Aquele homem maravilhoso que havia se perdido pelos caminhos da existência. Havia também aquele amigo dedicado, homem íntegro e bondoso que veio suavizar minha existência. Eu lucrei. Ele, não sei. Segurou minhas barras, foi meu apoio na dor, conseguiu com infinita paciência ouvir-me e esperou com carinho aquilo que eu podia lhe dar. Sustentou e sorriu encantado com minhas maluquices. Foi o homem que apostou tudo e teve de arcar com todos os sentimentos, porque não ganhou nada em troca. Eu só lhe dei preocupações e doenças. Havia, porém, esse grande sentimento oculto, percebido, mas não comentado: a nota dissonante de meu estranho viver.
Pedi-lhe como último ato que fôssemos ao hotelzinho da Serra mais uma vez. Quem sabe o encerramento dessa jornada, o fim. Na penumbra do quarto, olhos esgazeados lutavam em vão procurando, febril, por algo que somente a mente estiolada acreditava. Pensava, alucinada da vida, e a vida esvaía-se.
Penso em minha mãe que foi uma grande mulher. Não grande no sentido do saber, do ter, e sim do ser. Ela morreu em meio a grande sofrimento. Como doida bailarina, saltando para o infinito, volteando numa dança insana, carregando no girar vertiginoso, farrapos de coisas inesquecíveis, retalhos tristes e dolorosos de um viver sem glória. Chorei os triunfos e as misérias da sua existência. O mundo desconhecido, o outro lado, a morte, abriram-lhe desmesuradamente os olhos, interrogando sem ver, olhando, implorando a ajuda sem saber ao certo o que sentia.
A dor golpeava as entranhas, cortava em pedacinhos seus nervos, seus músculos. Retorcia a boca na ânsia de controlar-se e suportar o sofrimento. Ácido puro corroia seus ossos. O sangue corria louco, pulsando em agonia. Seu corpo magro arqueava-se nos últimos estertores, buscava aflita, o descanso final. Um gelo terrificante transformara suas mãos repulsivas ao toque. Subitamente tudo cessou. Como um denso nevoeiro, uma infinita tristeza desceu sobre ela e em seus olhos eu vi a certeza que a partida seria em breve e a saudade seria eterna. Uma grande paz que antecede os grandes momentos distendeu aquela face querida, retorcida pelo sofrimento.
A mão fria e implorante deslizou a esmo sob o lençol e aninhou-se quietinha dentro da palma da minha mão. Não tinha mais forças para aperta-la, mas tenho certeza que a pressão que ela sentiu foi a dos dedos amados de meu pai. Para ela tudo ficou bem, pois o homem que sempre viveu no fundo do seu coração, aquele que foi sempre a razão e o motivo do seu viver, aquele eterno namorado estava de volta para ajuda-la.
A presença de meu pai, agora era real e ela era feliz novamente. O véu da morte desceu sobre ela e a paz finalmente chegou. Suspirou suavemente, disse o nome de papai e partiu. Eu fechei-lhe os olhos e limpei as lágrimas que molhavam o meu rosto. Com tristeza e alegria ao mesmo tempo, me despedi. Tinha acabado tudo para ela. A dor tinha abandonado sua presa e tudo era paz. Consolei Mário, pois também ele estava perdido, desorientado. Abracei-o em agradecimento pelo carinho e companheirismo, e pelo seu grande coração.
O vento sopra leve sobre a folha de papel, virando a página, e eu penso naquela mulher que amou somente uma vez na vida. Amou a um único homem e a ele foi fiel no coração e na vida, até o último momento...
DUTRA, Laura dos Santos. História de um amor comum. Rio de Janeiro: Editora Aberta-IPAG, 2003, 96 p. (Email: editoraaberta@uol.com.br)
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ResponderExcluirCarissima Laura dos Santos
ResponderExcluirFelicitações por mais uma obra permeada em sabedoria
e delicadeza...!
(E' uma leitura educada...nao agride nosso emocional nem os olhos...)
D'Laura
Doçura ...
sinceridade ...
Amor e Respeito
ao próximo
são qualidades difíceis de encontrar ...
felizmente
Encontrei essas qualidades ...
E essas...
fazem parte de ti ...
Tive a honra de conhece-la e ter sua amizade
Deus se faz entre nòs
Carinhosamente
Edna"D'lasrosas"