Texto escrito por Carlos Alberto dos Santos Dutra e publicado no Jornal da Cidade, Brasilândia, 21.Mar.2003 e Diário MS, Dourados, 18.Mar.2003)
No dia 14 último de março de 2003, circulou na Imprensa de Mato Grosso do Sul, a notícia de que a Justiça Federal havia determinado, através de liminar, que os índios Guarani que ocupam a fazenda Brasília do Sul, no município de Juti, no sul do Estado, deviam ser retirados do local. O fato é preocupante, pois revela que nem a chamada Justiça está imune à prática do continuísmo experimentado de longa data pelo Estado em relação a esses índios, qual seja a de seguidamente negar-lhes o direito histórico de acesso à terra de seus antepassados.
A morte do cacique Marcos Veron, ocorrida em janeiro desse ano, ainda não terminou de ser chorada pelos seus patrícios Guarani-Kaiowá da comunidade de Takuára e o povo que ele liderava já se encontra novamente sob a mira de uma Justiça visivelmente comprometida com as aspirações proprietárias do sr. Jacinto Honório Silva Fº e seu pedido de reintegração de posse que busca reaver a área da fazenda e pede a extrusão dos índios da área.
Pelo que se tem observado dos acontecimentos, há mais de 50 anos esse povo vem tentando recuperar uma parte do antigo território que aos poucos foi sendo engolido pela mão branca do latifúndio. Cansados de lutar contra um Direito excessivamente regulador da propriedade privada, liderados pelo velho cacique, em 1997 a comunidade fez a retomada de seu território ancestral. Tão-logo entrou na área, como é de costume de todo povo ligado a terra, ele começam a construir suas casas e iniciar o plantio de suas roças, sem as quais suas famílias não poderiam subsistir. Mas logo o fazendeiro, dito proprietário, recorre ao Pretório, e um juiz e sua lei positiva, rapidamente ordena a expulsão dos indígenas do lugar.
Em outubro de 2001, vergonhosamente assistimos a participação no despejo dessa comunidade mais de cem policiais e soldados armados a mando de um governo pretensamente popular e democrático. “Isso aqui é a minha vida, a minha alma”, teria dito o líder setuagenário que, dois anos antes havia percorrido a Europa sensibilizando chefes de estado em países desenvolvidos para a situação de seu povo. Se o velho mundo lhe deu ouvidos, fizeram-se moucos aqueles que aqui viviam em terra brasili.
Se você me tira desta terra você está tirando a minha vida. As palavras proféticas do velho cacique se cumpriram poucas horas depois naquele dia fatídico para aquele povo. Preso e duramente espancado pelos empregados da fazenda, ainda na área do conflito, o apelo pacífico da permanência de seus patrícios no local não foi ouvido. A exemplo dos grandes mártires como Sepé, Marçal, Xicão, Galdino e tantos outros, que sucumbiram, a vida de mais esse líder ceifada pelos poderosos nos faz duvidar se somos capazes de mudar o curso da história no rumo da dignidade e da justiça... Tirara a vida de uma de nossas lideranças, disse Neusa Pataxó quando do assassinato do líder Xukuru, mas nós mulheres, temos o poder de gerar outras dez!
A morte de Marcos Veron, informa a entidade Survival, da Inglaterra, foi o terceiro assassinato indígena esse ano no Brasil. Alguns dias atrás, Leopoldo Crespo, índio Kaingang, de 77 anos de idade havia sido brutalmente assassinado por um grupo de jovens no estado do Rio Grande do Sul. O outro índio morto foi Aldo da Silva Mota, Makuxi encontrado numa cova rasa em uma fazenda em Roraima.
As esperanças dos povos indígenas no Brasil, ainda que renovadas com a posse do novo presidente Lula e sua boa intenção de corrigir as injustiças praticadas há séculos contra as imensas minorais excluídas do Brasil, ela carece ainda da nossa ajuda. Todos somos convidados a participar dessa re-invenção do Brasil, envidando esforços para que a Justiça seja efetivamente alcançada.
É urgente que a sociedade esclarecida e engajada brasileira pressione os poderes instituídos a reverem suas ultrapassadas teses em relação a terra e aos povos indígenas. Urge, entre outras coisas, por exemplo, se rever a prática de um judiciário cujas decisões deitam raízes em jurássicos códigos, paridos ainda em tempos napoleônicos e que só tem trazido dor e morte no campo. Sabe-se que, quanto à posse e a propriedade da terra, em coerência com o desafio político de uma época pretérita que era o de destruir o regime feudal, as idéias que tornaram praticamente absoluto o regime da propriedade privada, hoje se revelam anacrônicas e largamente conflitivas com as exigências atuais e os novos horizontes constitucionais da função social que é configurada à terra hodiernamente.
Diante dos instrumentos legais como agravos regimentais e agravos de instrumentos, parcos e ineficazes diante de situações tão desesperadoras, configuram-se na maioria das vezes meramente protelatórios em face de liminares rapidamente conseguidas pelos proprietários no caso da reintegração de posse. Mais do que a letra fria da lei, espera o velho Marco Veron e seu colar de lágrimas de Nossa Senhora ao peito, já descansando em terra estranha, é hora de dar um basta a essa visão carcomida de um Direito que de maneira irracional protege o proprietário, pelo simples fato dele ser portador de um título de papel (de origem duvidosa) e persegue aquele que ocupa a terra de seus pais, não para especulá-la, mas para produzir o sagrado sustento de seus filhos. Descanse em paz, velho guerreiro!
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Adorei o blog, é um trabalho sagrado, sem par!
ResponderExcluirO achei pesquisando sobre línguas extintas, assisti ao vídeo no programa CENA MÁGICA de uma mulher conversando com o gravador, então o vídeo que me trouxe aqui! Muito bem! Gostaria de saber se há versões dos filmes com maior duração e aúdio original. Sou compositor erudito e colho essas vozes para criar obras eletro-acústicas, é um meio de preservar essa cultura! Se quiser, mantenhas contato em: wagner.ortiz@hotmail.com
Obrigado!