quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Vox populi, vox dei.

Carlito Dutra

Uma amiga pediu minha opinião sobre em quem votar no segundo turno. Fui direto ao ponto. Não sem antes lembrar as palavras de Marcelo Coelho, colunista da Folha de São Paulo, publicadas há dois dias: "Enquanto Dilma parece pisar num planeta cuja força de gravidade é o dobro da que conhecemos e Serra caminha pelo mundo como se ainda estivesse procurando asilo político, Marina parece não ter pernas; emana da terra como uma espécie de entidade fluida, caniço em flor (...). Seu corpo, na verdade, está na voz: é quando ela fala que se percebe que uma história pessoal de dor física e de resistência selvagem, como se a garganta guardasse as cicatrizes de um grande trauma".

Pois é, amigos, a melhor candidata, era, sem dúvida, a Marina. Mas o povo ainda não tinha olhos para ela. Por contingência histórica, agora, é sair da utopia e cair na realidade. E a realidade tem nome: Dilma, aquela que dará continuidade ao trabalho do presidente Lula. Eu explico o por quê da minha opção:

A despeito das falcatruas do PT e as vistas grossas de seu comandante maior, a sua candidata ainda detém o melhor projeto. Isso nos faz dizer que a escolha, agora, se dará no campo ideológico. Não será uma escolha religiosa ou moralista como temem alguns. Se ela pessoalmente é a favor do aborto, não importa. Como presidenta, se isso for proposto para o país inteiro, com certeza, o povo decidirá isso através de um plebiscito. Graças à Câmara e ao Senado, vivemos numa democracia e o povo será consultado sobre esse assunto e outros da pauta temerária petista. Ditadura nunca mais!

Para os católicos e evangélicos, um consolo: os que praticam atos contra a lei de Deus, acertarão suas contas com Ele, no final dos tempos. O importante, agora, no tempo que se chama hoje, é agir conforme a consciência e os valores de cada um, pensando no que é melhor para a maioria dos cidadãos brasileiros.

Serra representa os "grandes", os "de fora", o passado de dependência (quando os pobres dependiam dos favores dos ricos). Dilma, apesar do falsete no discurso e o medo que temos daquela que é apresentada pela mídia como "guerilheira, feminista" e seu vice "ateu ou endemoniado", como queiram, ainda assim, o projeto é o melhor para o Brasil, pois ele é popular e garante crescimento econômico e social para todos. Alguém pode dizer que os pobres, com certeza, continuarão recebendo migalhas, mas aos poucos eles estão erguendo a cabeça, alguns tendo oportunidades de "até" entrar na universidade. E a vida vai mudando, eles estão sendo incluídos, diminuindo, assim, as diferenças construídas ao longo de 500 anos de senzala.

E sabe de uma coisa: é melhor que os pobres estejam no poder e os ricos a sua volta, exigindo benesses. Noutros tempos, pobres não adentravam palacetes a não ser com bandeiras de reivindicação para serem ouvidos, sendo tratados como bandidos. Hoje eles têm direitos, vez, voz e respeito.

Por isso tudo, vou de Dilma, com consciência de que faço a coisa certa neste momento histórico do país. Sei que tropeços virão, mas faz parte do jogo da democracia. E esse jogo conhecemos, porque somos trabalhadores, militantes, homens e mulheres da luta, e conhecemos o valor das nossas conquistas. Uma delas, podemos dizer com orgulho: fomos capazes de fazer presidente aquele cidadão humilde que mudou a cara deste país. Quanto a Dilma, vox populi, vox dei!

domingo, 19 de setembro de 2010

O Senador Delcídio e os Ofaié


Carlos Alberto dos Santos Dutra

É muito bom receber um amigo.
Disse isso na sua última visita a Brasilândia,terra dos Ofaié.

Hoje, porém, dia 19 de setembro de 2010, a caravana do Senador Delcídio do Amaral passa com maior entusiasmo.
É recepcionado e saudado com fogos e carreatas.
Acenos de mãos e aplausos unem PT e PMDB no discurso local.

Ah, como seria bom se a harmonia e a paz reinasse entre os homens.

Ah, como seria bom se a política e sua prática cobrisse a todos com os benefícios prometidos em campanha.

Desde o mais alto posto do poder instituído até o mais humilde torrão de
existência, há olhos de esperança voltados para esse homem de cabelos brancos e retas intenções.

Ah, como seria bom que suas palavras fossem capaz de vencer o medo e a
hipocrisia que por vezes o cercam.

Ah, como seria bom que o Senador fosse capaz de romper com o fisiologismo da urbe e avançasse pela poeira dos campos, onde sobrevivem acampados, aldeados, os esquecidos de toda sorte. Porque sei que ele é capaz.

Falo da margem, dos que se encontram distantes dos palanques.
Falo dos Ofaié que neste mesmo dia de alegria pela chegada de Delcídio, esse povo celebra a tristeza de vivenciar mais uma tragédia de morte.

Ah, Senador nos perdoe mas são tantas as injustiças, que essa, é apenas mais uma. Só que essa dor é tão recente e ainda cala fundo.

Primeiro foi meu primogênito, Sebastião, jogado de um hospital para outro,
até morrer de meningite em São José do Rio Preto, minha primeira perda.

Depois foi meu marido, Eduardinho, hábil artesão, que fazia flechas lindas e
as vendia a troco de uns poucos cruzados, desassistido em hospital, morreu
de câncer, para tristeza de minha alma.

Depois, foi de novo, aquela doença cruel que devorou minha carne e minhas
esperanças, debilitando-me ao extremo, porém sobrevivi, e hoje vivo abaixo
de remédios contando os meus dias, vendo a aldeia desaparecer.

Agora o meu filho João que, para defender-me da ação de invasores patrícios
Guarani, chegou ao extremo do que a injuria suporta e deu cabo do agressor.

Ah, Senador, como dói saber que ele logo em seguida correu à cidade para se
entregar.

Ah, Senador, como gostaria Alfredo, nosso sábio ancião, de contar-lhe nossa
história, se vivo fosse.

Ah, Senador, como sua doce esposa iria sofrer ao ouvir as histórias de Eugênia e Francisca, Dirce e Maria, entre tantas mães que perderam seus filhos e que também já partiram.

Ah, Senador, como gostaria essa mãe, Cida, que o senhor pudesse zelar e
proteger o seu filho, nesta hora tão difícil, preso numa delegacia por
defender a vida desta anciã, nos poucos dias que lhe restam.

Depois de tudo que me foi tirado, nossa aldeia abandonada pela Funai, nas mãos de saqueadores e péssimas lideranças, minha esperança, deposito-a em suas mãos.

Meu título de eleitor? Desculpe, Senador. Ele está tão desbotado devido a fumaça do barraco e as lágrimas que choro agora, que tenho até vergonha de mostrar...

domingo, 11 de julho de 2010

Minha Pátria não tem chuteiras

Vitor Hugo Noroefé

para o Casca, que ainda invejo

Ao contrário de Nelson Rodrigues, que afirmava ser o Brasil uma “pátria de chuteiras”, a minha pátria não tem chuteiras. E isso aprendi desde muito pequeno. Em minha distante Cacequi, no extremo sul do Brasil, as peladas aconteciam com a nossa tão conhecida bola-de-meia. A dita cuja era confecção própria e consistia em um pedaço de meia de náilon feminina, preenchida com trapos. Jogávamos de pés descalços e os times eram divididos entre os “com-camisas” e os “sem-camisas”.

Sempre fui um perna-de-pau sem nunca ter sequer conseguido aprender a chutar corretamente uma bola. Até hoje também não sei nomear a posição dos jogadores dentro de um campo. Meu herói era um negrinho mirrado que jogava rindo. Chamava-se Sebastião Castilho, mas todo mundo o conhecia por Casca. Ele nunca soube, mas trocaria qualquer coisa na vida para ter sido como ele: ágil com uma bola nos pés, sem nunca perder o humor e o riso aberto. Até hoje, vejo Casca correndo pelos campos miseráveis da minha infância.

Companheiros de fome e outros infortúnios, do Povo Novo, bairro onde crescemos, futebol para nós era apenas uma diversão barata para quem sequer tinha um radinho em casa. Minha inveja da habilidade de Casca era tanta, que numa certa idade deixei de assistir partidas de futebol e menti, para mim mesmo, que detestava esse esporte. A escola Duque de Caxias, onde estudamos juntos, ficou para trás, crescemos e cada um seguiu o seu caminho. Ele continuou brilhando nos campos, rindo, brincando com a bola.

Casca era festa por onde passava. As pernas finas e tortas dele faziam o horror e pânico dos adversários. Nessa época ele já tinha chuteiras. Não era mais “o meu Casca”. O “meu Casca” jogava de pé descalço mesmo, ou seja, como normalmente andava pelas ruas de nossa província. O Casca de minha memória e que invejei e invejo, não tinha chuteiras, nem camiseta, nem time. Na hora decidia de que lado jogaria. Casca foi assassinado, enquanto limpava valos em minha cidade, emprego que conseguiu na prefeitura local, provavelmente devido aos seus dotes esportivos.

Essa pátria sem chuteiras me persegue até hoje. E não tem copa do mundo que modifique o que penso. Ainda mais agora, que a seleção voltou mais cedo para casa, graças a habilidade dos holandeses. O que mostra que futebol (como a maioria dos demais esportes ditos oficiais) é negócio e não mera brincadeira. Não tem mais analfabeto batendo bola nos grandes times. Não tem mais o gosto e a alegria de um jogo limpo com as inocências de um campinho de várzea. O negócio agora virou lucrativo. As primeiras coisas ensinadas a um menino que se destaque é que deve estudar alguma língua, aprender a se comunicar e, se possível, que se transforme em ordeiro desportista. Assim a farra, a quebra das regras virou mera ilusão de tempos idos. O negócio Copa do Mundo, que gera milhões ou trilhões, não se importa com as crianças miseráveis de várias partes do mundo que fabricam bolas e demais utensílios.

O negócio copa também permite que uma Seleção Brasileira aceite jogar num miserável Zimbabwe, raspando dos cofres 1,8 milhões de dólares de um país paupérrimo, onde mais de noventa por cento da população passa fome. E o pior: provavelmente se não fosse o Brasil outro país aceitaria a dinheirama. Creio, verdadeiramente, que se essa minha pátria sem chuteiras soubesse de todas as negociatas de uma copa do mundo, desistiria de chorar tanto quando perde uma competição. Mas, quem informa isso? Poucos, pouquíssimos. A maioria fica nos estertores lunáticos de um Galvão Bueno, de um alucinado Casagrande ou de um aproveitador Falcão, sonhando em ganhar a titularidade de técnico. Tudo, claro, via Rede Globo, dona da melhor e maior fatia nessa modalidade de competição.

Essa pátria sem chuteiras é aquela que ainda desconhece os milhões que os jogadores da seleção lucram por uma camiseta. Que por terem tantos lucros podem se dar ao luxo de seguir seus mentores (cartolas e patrocinadores), mandando as favas o tão desgastado patriotismo.

Passando por qualquer campinho de periferia, ou canto que ainda sobra das cidades, podemos ver a cara dessa nossa pátria sem chuteiras. São os mesmos meninos de nossas infâncias, pobres, sonhando com uma possibilidade na vida. A de ser jogador de futebol, mesmo sabendo que, no fundo no fundo, são apenas sobras, restos de uma civilização que quer descartar o humano de nossas mais sinceras inocências.

É por isso, que sonho que um dia essa pátria sem chuteiras, terá grandes satisfações. Quando, por exemplo, essa seleção se negar a jogar contra países miseráveis; quando essa seleção disser que não mais será escrava de mercenários. Que de agora em diante o jogo será limpo e dedicado a toda a pátria sem chuteiras que se espreme nos recantos da miséria sujando a cara de verde e amarelo e enfeitando o cordão com sua fome diária. Nesse dia sim, a pátria sem chuteiras, mais de 50 milhões, estará redimida e reconhecida como cidadã em sua plenitude. Até lá, os verdadeiros patriotas, precisam torcer para que a seleção brasileira não traga para casa nem mais um título, mesmo que jogue em casa. Sei que a questão é difícil. Dóceis que somos, choramos com as lágrimas dos jogadores; sofremos com essa incapacidade esportiva e agonizamos em nossa solidariedade ímpar.

Por isso a minha pátria não tem chuteiras e não me sinto patriota quando sou tratado como mero consumidor do que é mais sórdido. Não grito em arquibancada, em rua ou em qualquer espaço – coletivo ou não – para não deixar meu grito sendo vão, aplaudindo a desumanidade que tomou conta do futebol. Embora, seja preciso convir, que o futebol ainda é um dos mais reconhecidos esportes da sociabilidade dos pobres – aqueles que não possuem chuteiras.

Fortaleza (CE) 2 de julho de 2010, 18:30