Vitor Hugo Noroefé
para o Casca, que ainda invejo
Ao contrário de Nelson Rodrigues, que afirmava ser o Brasil uma “pátria de chuteiras”, a minha pátria não tem chuteiras. E isso aprendi desde muito pequeno. Em minha distante Cacequi, no extremo sul do Brasil, as peladas aconteciam com a nossa tão conhecida bola-de-meia. A dita cuja era confecção própria e consistia em um pedaço de meia de náilon feminina, preenchida com trapos. Jogávamos de pés descalços e os times eram divididos entre os “com-camisas” e os “sem-camisas”.
Sempre fui um perna-de-pau sem nunca ter sequer conseguido aprender a chutar corretamente uma bola. Até hoje também não sei nomear a posição dos jogadores dentro de um campo. Meu herói era um negrinho mirrado que jogava rindo. Chamava-se Sebastião Castilho, mas todo mundo o conhecia por Casca. Ele nunca soube, mas trocaria qualquer coisa na vida para ter sido como ele: ágil com uma bola nos pés, sem nunca perder o humor e o riso aberto. Até hoje, vejo Casca correndo pelos campos miseráveis da minha infância.
Companheiros de fome e outros infortúnios, do Povo Novo, bairro onde crescemos, futebol para nós era apenas uma diversão barata para quem sequer tinha um radinho em casa. Minha inveja da habilidade de Casca era tanta, que numa certa idade deixei de assistir partidas de futebol e menti, para mim mesmo, que detestava esse esporte. A escola Duque de Caxias, onde estudamos juntos, ficou para trás, crescemos e cada um seguiu o seu caminho. Ele continuou brilhando nos campos, rindo, brincando com a bola.
Casca era festa por onde passava. As pernas finas e tortas dele faziam o horror e pânico dos adversários. Nessa época ele já tinha chuteiras. Não era mais “o meu Casca”. O “meu Casca” jogava de pé descalço mesmo, ou seja, como normalmente andava pelas ruas de nossa província. O Casca de minha memória e que invejei e invejo, não tinha chuteiras, nem camiseta, nem time. Na hora decidia de que lado jogaria. Casca foi assassinado, enquanto limpava valos em minha cidade, emprego que conseguiu na prefeitura local, provavelmente devido aos seus dotes esportivos.
Essa pátria sem chuteiras me persegue até hoje. E não tem copa do mundo que modifique o que penso. Ainda mais agora, que a seleção voltou mais cedo para casa, graças a habilidade dos holandeses. O que mostra que futebol (como a maioria dos demais esportes ditos oficiais) é negócio e não mera brincadeira. Não tem mais analfabeto batendo bola nos grandes times. Não tem mais o gosto e a alegria de um jogo limpo com as inocências de um campinho de várzea. O negócio agora virou lucrativo. As primeiras coisas ensinadas a um menino que se destaque é que deve estudar alguma língua, aprender a se comunicar e, se possível, que se transforme em ordeiro desportista. Assim a farra, a quebra das regras virou mera ilusão de tempos idos. O negócio Copa do Mundo, que gera milhões ou trilhões, não se importa com as crianças miseráveis de várias partes do mundo que fabricam bolas e demais utensílios.
O negócio copa também permite que uma Seleção Brasileira aceite jogar num miserável Zimbabwe, raspando dos cofres 1,8 milhões de dólares de um país paupérrimo, onde mais de noventa por cento da população passa fome. E o pior: provavelmente se não fosse o Brasil outro país aceitaria a dinheirama. Creio, verdadeiramente, que se essa minha pátria sem chuteiras soubesse de todas as negociatas de uma copa do mundo, desistiria de chorar tanto quando perde uma competição. Mas, quem informa isso? Poucos, pouquíssimos. A maioria fica nos estertores lunáticos de um Galvão Bueno, de um alucinado Casagrande ou de um aproveitador Falcão, sonhando em ganhar a titularidade de técnico. Tudo, claro, via Rede Globo, dona da melhor e maior fatia nessa modalidade de competição.
Essa pátria sem chuteiras é aquela que ainda desconhece os milhões que os jogadores da seleção lucram por uma camiseta. Que por terem tantos lucros podem se dar ao luxo de seguir seus mentores (cartolas e patrocinadores), mandando as favas o tão desgastado patriotismo.
Passando por qualquer campinho de periferia, ou canto que ainda sobra das cidades, podemos ver a cara dessa nossa pátria sem chuteiras. São os mesmos meninos de nossas infâncias, pobres, sonhando com uma possibilidade na vida. A de ser jogador de futebol, mesmo sabendo que, no fundo no fundo, são apenas sobras, restos de uma civilização que quer descartar o humano de nossas mais sinceras inocências.
É por isso, que sonho que um dia essa pátria sem chuteiras, terá grandes satisfações. Quando, por exemplo, essa seleção se negar a jogar contra países miseráveis; quando essa seleção disser que não mais será escrava de mercenários. Que de agora em diante o jogo será limpo e dedicado a toda a pátria sem chuteiras que se espreme nos recantos da miséria sujando a cara de verde e amarelo e enfeitando o cordão com sua fome diária. Nesse dia sim, a pátria sem chuteiras, mais de 50 milhões, estará redimida e reconhecida como cidadã em sua plenitude. Até lá, os verdadeiros patriotas, precisam torcer para que a seleção brasileira não traga para casa nem mais um título, mesmo que jogue em casa. Sei que a questão é difícil. Dóceis que somos, choramos com as lágrimas dos jogadores; sofremos com essa incapacidade esportiva e agonizamos em nossa solidariedade ímpar.
Por isso a minha pátria não tem chuteiras e não me sinto patriota quando sou tratado como mero consumidor do que é mais sórdido. Não grito em arquibancada, em rua ou em qualquer espaço – coletivo ou não – para não deixar meu grito sendo vão, aplaudindo a desumanidade que tomou conta do futebol. Embora, seja preciso convir, que o futebol ainda é um dos mais reconhecidos esportes da sociabilidade dos pobres – aqueles que não possuem chuteiras.
Fortaleza (CE) 2 de julho de 2010, 18:30
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Este artigo é de autoria de um amigo de infância que pouco sabia de sua vida, a não ser a anomia que cercava a sua existência em relação a minha, alienado que fui até tomar conciência do quão grande e lucido ele era, o que me faz respeitar a sua trajetória de luta e idealismo, mesmo nunca tendo com quem contar. E, hoje, ainda o descubro a tempo de homenageá-lo. Carlito Dutra.
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