terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Marcos Veron: vida e alma Guarani

Texto escrito por Carlos Alberto dos Santos Dutra e publicado no Jornal da Cidade, Brasilândia, 21.Mar.2003 e Diário MS, Dourados, 18.Mar.2003)


No dia 14 último de março de 2003, circulou na Imprensa de Mato Grosso do Sul, a notícia de que a Justiça Federal havia determinado, através de liminar, que os índios Guarani que ocupam a fazenda Brasília do Sul, no município de Juti, no sul do Estado, deviam ser retirados do local. O fato é preocupante, pois revela que nem a chamada Justiça está imune à prática do continuísmo experimentado de longa data pelo Estado em relação a esses índios, qual seja a de seguidamente negar-lhes o direito histórico de acesso à terra de seus antepassados.

A morte do cacique Marcos Veron, ocorrida em janeiro desse ano, ainda não terminou de ser chorada pelos seus patrícios Guarani-Kaiowá da comunidade de Takuára e o povo que ele liderava já se encontra novamente sob a mira de uma Justiça visivelmente comprometida com as aspirações proprietárias do sr. Jacinto Honório Silva Fº e seu pedido de reintegração de posse que busca reaver a área da fazenda e pede a extrusão dos índios da área.

Pelo que se tem observado dos acontecimentos, há mais de 50 anos esse povo vem tentando recuperar uma parte do antigo território que aos poucos foi sendo engolido pela mão branca do latifúndio. Cansados de lutar contra um Direito excessivamente regulador da propriedade privada, liderados pelo velho cacique, em 1997 a comunidade fez a retomada de seu território ancestral. Tão-logo entrou na área, como é de costume de todo povo ligado a terra, ele começam a construir suas casas e iniciar o plantio de suas roças, sem as quais suas famílias não poderiam subsistir. Mas logo o fazendeiro, dito proprietário, recorre ao Pretório, e um juiz e sua lei positiva, rapidamente ordena a expulsão dos indígenas do lugar.

Em outubro de 2001, vergonhosamente assistimos a participação no despejo dessa comunidade mais de cem policiais e soldados armados a mando de um governo pretensamente popular e democrático. “Isso aqui é a minha vida, a minha alma”, teria dito o líder setuagenário que, dois anos antes havia percorrido a Europa sensibilizando chefes de estado em países desenvolvidos para a situação de seu povo. Se o velho mundo lhe deu ouvidos, fizeram-se moucos aqueles que aqui viviam em terra brasili.

Se você me tira desta terra você está tirando a minha vida. As palavras proféticas do velho cacique se cumpriram poucas horas depois naquele dia fatídico para aquele povo. Preso e duramente espancado pelos empregados da fazenda, ainda na área do conflito, o apelo pacífico da permanência de seus patrícios no local não foi ouvido. A exemplo dos grandes mártires como Sepé, Marçal, Xicão, Galdino e tantos outros, que sucumbiram, a vida de mais esse líder ceifada pelos poderosos nos faz duvidar se somos capazes de mudar o curso da história no rumo da dignidade e da justiça... Tirara a vida de uma de nossas lideranças, disse Neusa Pataxó quando do assassinato do líder Xukuru, mas nós mulheres, temos o poder de gerar outras dez!

A morte de Marcos Veron, informa a entidade Survival, da Inglaterra, foi o terceiro assassinato indígena esse ano no Brasil. Alguns dias atrás, Leopoldo Crespo, índio Kaingang, de 77 anos de idade havia sido brutalmente assassinado por um grupo de jovens no estado do Rio Grande do Sul. O outro índio morto foi Aldo da Silva Mota, Makuxi encontrado numa cova rasa em uma fazenda em Roraima.

As esperanças dos povos indígenas no Brasil, ainda que renovadas com a posse do novo presidente Lula e sua boa intenção de corrigir as injustiças praticadas há séculos contra as imensas minorais excluídas do Brasil, ela carece ainda da nossa ajuda. Todos somos convidados a participar dessa re-invenção do Brasil, envidando esforços para que a Justiça seja efetivamente alcançada.

É urgente que a sociedade esclarecida e engajada brasileira pressione os poderes instituídos a reverem suas ultrapassadas teses em relação a terra e aos povos indígenas. Urge, entre outras coisas, por exemplo, se rever a prática de um judiciário cujas decisões deitam raízes em jurássicos códigos, paridos ainda em tempos napoleônicos e que só tem trazido dor e morte no campo. Sabe-se que, quanto à posse e a propriedade da terra, em coerência com o desafio político de uma época pretérita que era o de destruir o regime feudal, as idéias que tornaram praticamente absoluto o regime da propriedade privada, hoje se revelam anacrônicas e largamente conflitivas com as exigências atuais e os novos horizontes constitucionais da função social que é configurada à terra hodiernamente.

Diante dos instrumentos legais como agravos regimentais e agravos de instrumentos, parcos e ineficazes diante de situações tão desesperadoras, configuram-se na maioria das vezes meramente protelatórios em face de liminares rapidamente conseguidas pelos proprietários no caso da reintegração de posse. Mais do que a letra fria da lei, espera o velho Marco Veron e seu colar de lágrimas de Nossa Senhora ao peito, já descansando em terra estranha, é hora de dar um basta a essa visão carcomida de um Direito que de maneira irracional protege o proprietário, pelo simples fato dele ser portador de um título de papel (de origem duvidosa) e persegue aquele que ocupa a terra de seus pais, não para especulá-la, mas para produzir o sagrado sustento de seus filhos. Descanse em paz, velho guerreiro!

Somos todos Autores

(Discurso proferido na Noite de Autógrafo de lançamento do livro As ocupações de terra e a produção do direito, de Carlos Alberto dos Santos Dutra, na Câmara Municipal de Brasilândia, em 21 de abril de 2003)


Senhores e Senhoras, Amigos aqui reunidos.

Nesta noite, vejo aqui tanta gente querida a minha volta. Pessoas especiais, algumas de longe, outras de perto, quero de sintam, uma a uma, todas acolhidas aceitando o meu abraço, a minha gratidão pela presença, aceitando o meu cordial boa noite. Obrigado por terem vindo. Estou honrado com vossas presenças.

Pois é olhando para essas pessoas que deixaram suas casas seus afazeres e compromissos para estar aqui nesse encontro de congraçamento e demonstração de laços de amizade, é que percebo o quanto Deus tem sido bom comigo. O quanto o Senhor da História e sua Páscoa gloriosa festejada ontem, tem cumulado este servo de toda bênção. Percebo o quanto meus caminhos têm sido pontuados de grandes realizações e vitórias. Realizações que desde pequeno aprendi a dividir com quem vai ao mesmo rumo, mesmo que distante ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar.

O lançamento de um livro é sempre um encontro. Um encontro entre um determinado número de leitores e um autor. Mas, sobretudo, é o encontro de um autor consigo mesmo. É aí, nesse momento que o homem se sente um criador, quando lambe a cria recém parida, como diriam meus patrícios da pampa gaúcha. É o momento crucial de sua vida, quando ele exorciza seus fantasmas e expõe suas idéias ao um público mais amplo para além do círculo familiar e de amigos.

Sobre o livro posso dizer que ele, é mais do que uma monografia, exigência acadêmica para o grau de Direito. Apresenta-se como uma oportunidade de dizer a todos que é possível produzir um pensamento jurídico novo, que responda aos anseios sociais da vida que brota da experiência de milhares e milhares de brasileiros excluídos das decisões e dos modos de produção.

Pois foi por entender que é possível o diálogo com outras formas de pensar o Direito, superando o entendimento individualista e regulador tão-somente da vida privada, que desafiei a lógica das editoras e do mercado, e ousei trazer a lume os reclamos daqueles que lutam em favor de uma norma que busque governar a vida social no sentido do justo.

Ainda que o tema da Reforma Agrária sofra o estigma do preconceito e o temor da contaminação do impulso ideológico, o livro, na verdade, tem mais perguntas do que respostas.

Abre-se para dúvidas e premissas que ensejam respostas; abre-se para a vida ao entender o Direito como produção humana voltada a dirimir conflitos; abre-se para a Justiça na esperança de que aqueles que produzem o Direito o façam com um olho no costume de ontem e outro na realidade hoje.

Porque o Direito, não pode virar as costas para a miséria dos sem-casa, dos sem-segurança, dos sem-famílias, dos sem-água, dos sem-escola, dos sem-terra. Porque o Direito não pode virar as costas para os sem-sorte, despojando-se, sob o manto da fria legalidade, de qualquer comprometimento com as mudanças sociais. Trata-se de seres humanos e suas ações reivindicatórias inserem-se no auditório da vida. No auditório do amplo espaço do Direito.

Ainda que tal compreensão possa entrar em rota de colisão com a idéia de auto-suficiência do Direito que não inclui na esfera própria de sua atuação qualquer questionamento acerca da legitimidade e da justiça das leis, o livro quer dizer que está mais do que na hora de se pensar em mudanças.

Hora de se romper com a aparência de um Direito como pura emanação estatal, distante das situações vividas e a qual todos estamos submetidos. Em outras palavras, hora de dar voz aos sem-voz.

Mas, hoje aqui, não pretendo aprofundar um discurso sobre mim e tampouco sobre o conteúdo do livro ora lançado. Isso, por uma razão muito simples: o livro fala daquilo que nosso coração sente e do que nossos olhos vêem. Mas o que vemos? Será que vemos?

Conta-se que Sócrates, estava sentado na soleira da porta de sua casa, quando passou pela rua um homem correndo e um grupo de soldado atrás dele em sua perseguição. --Agarre esse sujeito, ele é um ladrão!, pediu o policial ao filósofo. Ao que o filósofo respondeu: --O que você entende por ladrão? Às vezes a questão está na pergunta e não na resposta. É uma questão de investigação zetética e não de enquadramento dogmático.

E eis que miro a minha volta, e meu olhar de poeta espreita olhinhos atentos, brilhantes de expectativa, na platéia que me ouve. Olhares pomposos, bem arrumados, orgulhosos, festivos e ansiosos de participar. Todos voltados para aquele que seria o acontecimento, o centro da noite: --o autor.

Mas, uma noite de autógrafo transcende o mero encontro do autor com sua obra, ela transcende o encontro do autor consigo mesmo. Uma noite de autógrafo nos insere a todos numa dimensão que vai além de nós mesmos. Sejamos nós expectadores, sejamos nós homenageados. Um encontro dessa natureza, ao reunir autoridades, intelectuais, políticos, profissionais liberais, professores, trabalhadores e lideranças de uma comunidade; Um encontro dessa natureza e importância, é mais que um encontro: é uma celebração.

Digo isso porque aqui se eleva, em espírito e verdade, o que de melhor temos e o que de melhor somos. Nesta casa, chamada a Casa do Povo, aqui nutrimos o melhor de nossas expectativas e o melhor de nossos projetos e sonhos em busca de uma vida saudável em sociedade.

Digo isso porque aqui se somam sonhos e esperanças de diferentes áreas e propósito, classes e credos, todos em torno de um ideal maior que nos une e nos move para horizontes mais largos: Quando o homem passa a creditar no próprio homem, como forma de alcançar melhores dias.

Quando me encontro com meus desencontros e vejo que perdi tempo com meus contratempos, já disse o poeta, é nesse momento que percebemos o quanto podemos ainda avançar em busca daquilo para qual acreditamos fomos criados.

É quando rompemos com o tempo que nos aprisiona e, cheios de coragem, nos lançamos no espaço de um longo caminho a percorrer. É nesse momento que percebemos a vocação que foi dada a cada um de nós: a vocação para viver em sociedade.

Quatro séculos antes de Cristo, Aristóteles já havia concluído que o homem era naturalmente um animal político, o que Cícero, 3 séculos depois viria a confirmar que a vocação do homem era, não para viver isolado, mas para a vida associativa. Santo Tomaz de Aquino, na esteira desses filósofos, mil anos depois, iria afirmar que a vida solitária era uma exceção.

Associar-se com os outros seres, portanto, é condição essencial para a vida, pois é através desse impulso de agregação que a sociedade, a humanidade avança, fruto da cooperação e da vontade dos homens e mulheres. É nesse momento que percebemos nossa vocação para além de nós mesmos: A vocação para o infinito. Sim, somos seres do infinito. Para além de ideologias que oprimem, para além das religiões que sufocam, para além de toda a dominação e ignorância.

Um rebento de dúvida, entretanto, de súbito, desprende do cosmo e plasma as aspirações humanas de inquietação e vontade. Uma inquietação contagiante que lhe arremessa para o alto, e uma vontade que lhe orienta a fazer sempre o melhor de si. E aí então, rasga-se o véu do tempo e somos jogados nos braços da história do aqui e do agora. E não é mais possível deixar de ver o que antes não era visto. E não é mais possível deixar de ver o que antes não era permitido ver, o que não se queria ver.

Homens e mulheres deserdados da terra, pelos campos, rondando cercas e seus pastos vazios. Homens e mulheres deserdados da sorte, pelos becos urbanos, em agonia e fuga. Homens e mulheres em desgastada anomia, esquecidos do Estado e sua Justiça. E aí houve quem cansou de ver tanta tristeza e lamento, ao lado de tanto poder e força, mesa farta e comensais. Teve vergonha de si, e ousou dizer um basta.

Foi nesse momento que despertamos da longa noite de nossas vidas. Foi nesse momento que despertamos da longa noite que, por muitos anos, nos jogou nos braços da omissão e do nada. E percebemos que ali, na nossa frente, estávamos diante, não mais de um autor: Estávamos diante do retrato de nós mesmos, e bem melhores, num despertar da consciência.

Tantos foram os anos de luta e trabalho, estudos e realizações, tantos projetos e resignações, vitórias e fracassos cotidianos. Tantos foram os enganos e os embates contra os tiranos. É como se esse livro, agora, a nossa frente, fosse de carne e osso. E que ao abrir-se para o autógrafo do autor, nos revelasse algo, algo muito familiar. É como se esse livro tenha sido escrito desde há muito, por mil autores, Brasilândia afora. Escrito não por mãos comuns, mas com as mãos e os olhos do coração. Mãos sofridas, calejadas, esquecidas. Corações ardentes, machucados, mas batendo. Um livro escrito individualmente, sim, mas assumido no coletivo da emoção.

Os olhos se abrem e já não estamos sozinhos na platéia diante do livro a nossa frente. Somos uma multidão de autores redesenhando a história de nossas vidas. Somos uma multidão de autores construindo passo a passo o cotidiano de nossos caminhos. Os olhos se abrem e somos agora uma multidão de autores re-escrevendo a história da história de nossas vidas e realidades vividas. Abrimos os olhos agora, e somos nós que nos cobrimos de aplausos, pela coragem que é nossa, manifestada amiúde pelas dobras do papel, pelas bordas dos diários, esquecidos, que vivemos. Abrimos os olhos e, agora, somos nós, os autores e nossas obras inacabadas, intestinas, a reclamar audição para a potência que somos.

Abro os olhos, e agora, vejo braços. Sim, braços que se abrem e acenam. São cercas que se rompem, cárceres que libertam, gritos que anseiam liberdade para as lágrimas. Sim, abro os braços e sinto que somos uma legião de homens e mulheres e suas bandeiras de luta, uma legião de velhos e moços, de sonhos embalados pelo povo na imensidão dos campos, pelas ruas, pelas águas e pelo ar.

E eis que me pego saindo de meu egoísmo e indo ao encontro de muitos outros que caminham na direção do vento. E vejo que não estou só. Agora é o coração que se abre e uma infinita legião de autores e leitores e seus livros, e suas idéias e suas propostas, reivindicações e protestos, contra a letra fria da lei, que se rebela acorrentada à vida e não à morte, com muitas flores e sorriso, mas com tenacidade e força, a flutuar em acordes.

Agora é o coração que nos toma o peito, sob um coro de crianças que nos embarga a alma, alimenta a fleuma, o átrio da essência do homem que nos diz que somos gente. Trinta e oito anos, Brasilândia. E estamos aqui ao teu lado. Como outros já tiveram. Uns mais velhos, outros mais sábios, e a maioria mais jovem com um longo caminho a percorrer.

Somos agora a própria história, feliz que brota de nossas mãos de autores, construtores, ruas largas, caravanas de esperança que teima aqui fincar raízes, orgulhosa de si, sob o impulso da vida.

Agora o que se sente não é mais a letra fria da lei, porque dentro dela, há o calor do homem, pelo toque da mão de quem vai ao mesmo rumo, com o bolso farto de pão, e a palavra justiça inscrita no fundo do coração. Muito Obrigado.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Adeus Marçal Guarani

(Poesia de Carlos Alberto dos Santos Dutra publicada no jornal Diário MS, Dourados, 24.Nov.2003; A Tribuna, Campo Grande, 23.Nov.2003, Jornal da Cidade, Brasilândia, 21.Mar.2003)

No dia 2 de setembro de 2002, o Juiz Federal José Denílson Branco, da 2ª Subseção Judiciária da 1ª Vara Criminal de Dourados extinguiu o processo 2001.60.02.001890-6, o chamado Caso Marçal, líder guarani assassinado numa emboscada na Aldeia Campestre, no município de Antônio João, no dia 25 de novembro de 1983. Hoje, passados 20 anos de sua morte, sob os benefícios escusos da lei, Justiça ainda não se fez e, nesses moldes, jamais se fará.

Adeus Marçal de guerra
Que lutava por terra
Eram tempos difíceis.

Adeus Marçal de sonhos
Guarani de fibra
Voz afiada em riste
A desafiar poderosos.

Adeus Marçal de Souza
Como tantos silva, pereira, santos
Anônimos e esquecidos.

Adeus Marçal do Papa
Da mídia
Do mutirão
Da enfermaria
Da Aldeia Campestre
Da tribuna e dos tribunais.

É, amigo Ñhandeva,
Segura firme neste microfone e grita.
Brada aos ventos
A injustiça que temos
E o que falta aos pequenos.
A terra que perdemos
O pão que não comemos.

É, amigo Kaiowá,
Teus irmãos ainda lutam.
Mestre Paulito e Dona Marta
Ainda ontem partiram,
Para o Guaxiré celeste
Ao teu encontro
Como outros que já se foram,
Antes do tempo e depois.

É, amigo Mbyá,
Irmão de longe,
Do Sul
Que também se soma
No colorido e na dor.

Ainda que as portas se fechem,
Ainda que juízes te arquivem
Nos porões do esquecimento.

Yvy Maraney
É blasfêmia aos ouvidos do latifúndio.
Incomoda-lhes saber que tua memória vive,
Que tuas idéias comovem.

Tua lembrança fere
E questiona a nossa Ordem
E desnuda a hipocrisia,
Cultivada dia-a-dia,
Nos discursos sem alarde.

Adeus Marçal desse mundo,
Nem julgamento decente te damos.

Adeus Marçal dessa terra,
Nem monumento a tua altura erguemos.

Adeus Marçal Guarani,
A espera é longa, mas não tarda.
Logo o ajuste de contas
Nos espreita na esquina senil da vida.

Donos do mundo e das coisas,
Nos apossamos.
Donos das pessoas e da vida,
As compramos,
Donos da Lei,
Da Moral
E da Justiça,
As decretamos
Para que os outros a cumpram.

Adeus Marçal de Souza Tupã-I.
Podem extinguir e arquivar tua história
Em processos de nanquim e celulose.

Só não podem calar a carne
E a verve da tua voz
Ainda viva que perambula
Pelas estradas, aldeias e periferias
Aquela que vem de longe,
Com o sabor das matas,
Dos campos que querem paz
E das aldeias que querem espaço.

Do Pirakuá Guarani
Ao São Lourenço Guató,

Do Boa Esperança Ofaié
A Aldeinha Terena,

Do Tarumã Kadiwéu
Ao Panambi Kaiowá.

E tantos tekohá
Com suas lutas memoráveis
E suas changas de sobrevivência
Que se somam
Encharcadas de sangue e esperança.

Adeus Marçal.
Reze por nós pa-í Kaiowá
Grande ñanderu Ñandeva
Que em breve estaremos juntos.

Teu sonho,
À semelhança de Sepé Tiarajú,
Há de permanecer
A estrela de maior brilho.
Não mais um sonho
De uma terra sem-mal,
Mas como realidade construída.

Não pelos homens,
Ditos doutos e letrados,
Mas pelas mãos dos patrícios
Parceiros.
Irmãos que manuseiam a terra
Desafiam mortes
E ousam cantar liberdades.