terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Somos todos Autores

(Discurso proferido na Noite de Autógrafo de lançamento do livro As ocupações de terra e a produção do direito, de Carlos Alberto dos Santos Dutra, na Câmara Municipal de Brasilândia, em 21 de abril de 2003)


Senhores e Senhoras, Amigos aqui reunidos.

Nesta noite, vejo aqui tanta gente querida a minha volta. Pessoas especiais, algumas de longe, outras de perto, quero de sintam, uma a uma, todas acolhidas aceitando o meu abraço, a minha gratidão pela presença, aceitando o meu cordial boa noite. Obrigado por terem vindo. Estou honrado com vossas presenças.

Pois é olhando para essas pessoas que deixaram suas casas seus afazeres e compromissos para estar aqui nesse encontro de congraçamento e demonstração de laços de amizade, é que percebo o quanto Deus tem sido bom comigo. O quanto o Senhor da História e sua Páscoa gloriosa festejada ontem, tem cumulado este servo de toda bênção. Percebo o quanto meus caminhos têm sido pontuados de grandes realizações e vitórias. Realizações que desde pequeno aprendi a dividir com quem vai ao mesmo rumo, mesmo que distante ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar.

O lançamento de um livro é sempre um encontro. Um encontro entre um determinado número de leitores e um autor. Mas, sobretudo, é o encontro de um autor consigo mesmo. É aí, nesse momento que o homem se sente um criador, quando lambe a cria recém parida, como diriam meus patrícios da pampa gaúcha. É o momento crucial de sua vida, quando ele exorciza seus fantasmas e expõe suas idéias ao um público mais amplo para além do círculo familiar e de amigos.

Sobre o livro posso dizer que ele, é mais do que uma monografia, exigência acadêmica para o grau de Direito. Apresenta-se como uma oportunidade de dizer a todos que é possível produzir um pensamento jurídico novo, que responda aos anseios sociais da vida que brota da experiência de milhares e milhares de brasileiros excluídos das decisões e dos modos de produção.

Pois foi por entender que é possível o diálogo com outras formas de pensar o Direito, superando o entendimento individualista e regulador tão-somente da vida privada, que desafiei a lógica das editoras e do mercado, e ousei trazer a lume os reclamos daqueles que lutam em favor de uma norma que busque governar a vida social no sentido do justo.

Ainda que o tema da Reforma Agrária sofra o estigma do preconceito e o temor da contaminação do impulso ideológico, o livro, na verdade, tem mais perguntas do que respostas.

Abre-se para dúvidas e premissas que ensejam respostas; abre-se para a vida ao entender o Direito como produção humana voltada a dirimir conflitos; abre-se para a Justiça na esperança de que aqueles que produzem o Direito o façam com um olho no costume de ontem e outro na realidade hoje.

Porque o Direito, não pode virar as costas para a miséria dos sem-casa, dos sem-segurança, dos sem-famílias, dos sem-água, dos sem-escola, dos sem-terra. Porque o Direito não pode virar as costas para os sem-sorte, despojando-se, sob o manto da fria legalidade, de qualquer comprometimento com as mudanças sociais. Trata-se de seres humanos e suas ações reivindicatórias inserem-se no auditório da vida. No auditório do amplo espaço do Direito.

Ainda que tal compreensão possa entrar em rota de colisão com a idéia de auto-suficiência do Direito que não inclui na esfera própria de sua atuação qualquer questionamento acerca da legitimidade e da justiça das leis, o livro quer dizer que está mais do que na hora de se pensar em mudanças.

Hora de se romper com a aparência de um Direito como pura emanação estatal, distante das situações vividas e a qual todos estamos submetidos. Em outras palavras, hora de dar voz aos sem-voz.

Mas, hoje aqui, não pretendo aprofundar um discurso sobre mim e tampouco sobre o conteúdo do livro ora lançado. Isso, por uma razão muito simples: o livro fala daquilo que nosso coração sente e do que nossos olhos vêem. Mas o que vemos? Será que vemos?

Conta-se que Sócrates, estava sentado na soleira da porta de sua casa, quando passou pela rua um homem correndo e um grupo de soldado atrás dele em sua perseguição. --Agarre esse sujeito, ele é um ladrão!, pediu o policial ao filósofo. Ao que o filósofo respondeu: --O que você entende por ladrão? Às vezes a questão está na pergunta e não na resposta. É uma questão de investigação zetética e não de enquadramento dogmático.

E eis que miro a minha volta, e meu olhar de poeta espreita olhinhos atentos, brilhantes de expectativa, na platéia que me ouve. Olhares pomposos, bem arrumados, orgulhosos, festivos e ansiosos de participar. Todos voltados para aquele que seria o acontecimento, o centro da noite: --o autor.

Mas, uma noite de autógrafo transcende o mero encontro do autor com sua obra, ela transcende o encontro do autor consigo mesmo. Uma noite de autógrafo nos insere a todos numa dimensão que vai além de nós mesmos. Sejamos nós expectadores, sejamos nós homenageados. Um encontro dessa natureza, ao reunir autoridades, intelectuais, políticos, profissionais liberais, professores, trabalhadores e lideranças de uma comunidade; Um encontro dessa natureza e importância, é mais que um encontro: é uma celebração.

Digo isso porque aqui se eleva, em espírito e verdade, o que de melhor temos e o que de melhor somos. Nesta casa, chamada a Casa do Povo, aqui nutrimos o melhor de nossas expectativas e o melhor de nossos projetos e sonhos em busca de uma vida saudável em sociedade.

Digo isso porque aqui se somam sonhos e esperanças de diferentes áreas e propósito, classes e credos, todos em torno de um ideal maior que nos une e nos move para horizontes mais largos: Quando o homem passa a creditar no próprio homem, como forma de alcançar melhores dias.

Quando me encontro com meus desencontros e vejo que perdi tempo com meus contratempos, já disse o poeta, é nesse momento que percebemos o quanto podemos ainda avançar em busca daquilo para qual acreditamos fomos criados.

É quando rompemos com o tempo que nos aprisiona e, cheios de coragem, nos lançamos no espaço de um longo caminho a percorrer. É nesse momento que percebemos a vocação que foi dada a cada um de nós: a vocação para viver em sociedade.

Quatro séculos antes de Cristo, Aristóteles já havia concluído que o homem era naturalmente um animal político, o que Cícero, 3 séculos depois viria a confirmar que a vocação do homem era, não para viver isolado, mas para a vida associativa. Santo Tomaz de Aquino, na esteira desses filósofos, mil anos depois, iria afirmar que a vida solitária era uma exceção.

Associar-se com os outros seres, portanto, é condição essencial para a vida, pois é através desse impulso de agregação que a sociedade, a humanidade avança, fruto da cooperação e da vontade dos homens e mulheres. É nesse momento que percebemos nossa vocação para além de nós mesmos: A vocação para o infinito. Sim, somos seres do infinito. Para além de ideologias que oprimem, para além das religiões que sufocam, para além de toda a dominação e ignorância.

Um rebento de dúvida, entretanto, de súbito, desprende do cosmo e plasma as aspirações humanas de inquietação e vontade. Uma inquietação contagiante que lhe arremessa para o alto, e uma vontade que lhe orienta a fazer sempre o melhor de si. E aí então, rasga-se o véu do tempo e somos jogados nos braços da história do aqui e do agora. E não é mais possível deixar de ver o que antes não era visto. E não é mais possível deixar de ver o que antes não era permitido ver, o que não se queria ver.

Homens e mulheres deserdados da terra, pelos campos, rondando cercas e seus pastos vazios. Homens e mulheres deserdados da sorte, pelos becos urbanos, em agonia e fuga. Homens e mulheres em desgastada anomia, esquecidos do Estado e sua Justiça. E aí houve quem cansou de ver tanta tristeza e lamento, ao lado de tanto poder e força, mesa farta e comensais. Teve vergonha de si, e ousou dizer um basta.

Foi nesse momento que despertamos da longa noite de nossas vidas. Foi nesse momento que despertamos da longa noite que, por muitos anos, nos jogou nos braços da omissão e do nada. E percebemos que ali, na nossa frente, estávamos diante, não mais de um autor: Estávamos diante do retrato de nós mesmos, e bem melhores, num despertar da consciência.

Tantos foram os anos de luta e trabalho, estudos e realizações, tantos projetos e resignações, vitórias e fracassos cotidianos. Tantos foram os enganos e os embates contra os tiranos. É como se esse livro, agora, a nossa frente, fosse de carne e osso. E que ao abrir-se para o autógrafo do autor, nos revelasse algo, algo muito familiar. É como se esse livro tenha sido escrito desde há muito, por mil autores, Brasilândia afora. Escrito não por mãos comuns, mas com as mãos e os olhos do coração. Mãos sofridas, calejadas, esquecidas. Corações ardentes, machucados, mas batendo. Um livro escrito individualmente, sim, mas assumido no coletivo da emoção.

Os olhos se abrem e já não estamos sozinhos na platéia diante do livro a nossa frente. Somos uma multidão de autores redesenhando a história de nossas vidas. Somos uma multidão de autores construindo passo a passo o cotidiano de nossos caminhos. Os olhos se abrem e somos agora uma multidão de autores re-escrevendo a história da história de nossas vidas e realidades vividas. Abrimos os olhos agora, e somos nós que nos cobrimos de aplausos, pela coragem que é nossa, manifestada amiúde pelas dobras do papel, pelas bordas dos diários, esquecidos, que vivemos. Abrimos os olhos e, agora, somos nós, os autores e nossas obras inacabadas, intestinas, a reclamar audição para a potência que somos.

Abro os olhos, e agora, vejo braços. Sim, braços que se abrem e acenam. São cercas que se rompem, cárceres que libertam, gritos que anseiam liberdade para as lágrimas. Sim, abro os braços e sinto que somos uma legião de homens e mulheres e suas bandeiras de luta, uma legião de velhos e moços, de sonhos embalados pelo povo na imensidão dos campos, pelas ruas, pelas águas e pelo ar.

E eis que me pego saindo de meu egoísmo e indo ao encontro de muitos outros que caminham na direção do vento. E vejo que não estou só. Agora é o coração que se abre e uma infinita legião de autores e leitores e seus livros, e suas idéias e suas propostas, reivindicações e protestos, contra a letra fria da lei, que se rebela acorrentada à vida e não à morte, com muitas flores e sorriso, mas com tenacidade e força, a flutuar em acordes.

Agora é o coração que nos toma o peito, sob um coro de crianças que nos embarga a alma, alimenta a fleuma, o átrio da essência do homem que nos diz que somos gente. Trinta e oito anos, Brasilândia. E estamos aqui ao teu lado. Como outros já tiveram. Uns mais velhos, outros mais sábios, e a maioria mais jovem com um longo caminho a percorrer.

Somos agora a própria história, feliz que brota de nossas mãos de autores, construtores, ruas largas, caravanas de esperança que teima aqui fincar raízes, orgulhosa de si, sob o impulso da vida.

Agora o que se sente não é mais a letra fria da lei, porque dentro dela, há o calor do homem, pelo toque da mão de quem vai ao mesmo rumo, com o bolso farto de pão, e a palavra justiça inscrita no fundo do coração. Muito Obrigado.

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